9 de fevereiro de 2017

professor alemão

chico buarque
como o bom escritor
que cria do que vive
escreveu 'o irmão alemão'
eu não tenho tenho um
irmão alemão
eu não tenho uma
cidadania alemã
eu sei duas palavras
em alemão,
mas eu leio a tradução
de autores alemães.
eu tive um professor alemão.
em greves meu professor
alemão era chamado de nazista.
o professor alemão era íntegro,
quando o chamavam de nazista
ele se calava.
a cor de seus olhos, a cor de sua pele
seu português difícil de entender
denunciavam o lugar de onde vinha
e sua histórica herança.
no segundo semestre da graduação
eu tive aula com o professor alemão.
ele dava aulas de teoria literária.
eu falei de bertolt brecht e quase reprovei
depois falei de adorno e fui aprovada.
as meninas da minha sala
estudavam muito para dar respostas
certas na aula do professor alemão.
ele me irritava, mas elas achavam ele lindo
ele fazia perguntas simples
de um jeito tão complexo
que uns passavam vergonha ao responder
enquanto a sala inteira era silêncio.
no primeiro semestre
do último ano da graduação
eu tive aula com o professor alemão.
eu era outra leitora e ele outro professor.
eu não tinha vergonha de responder
e ele já sabia como perguntar.
eu participava do grupo de estudos
'literatura e psicanálise'
cujo coordenador era o professor alemão.
um dia, o filho do professor alemão
adoeceu, então ele me ligou e pediu
que eu dispensasse a turma.
as meninas ainda morriam de amores
por ele, queriam que eu passasse o telefone dele
sendo que eu nem sabia como ele tinha o meu.
ele disse que eu parecia confiável
então pediu meu número para minha orientadora.
um dia ele aplicou uma prova
- foi lá que eu aprendi o que era darstellung
e vorstellung, as duas palavras em alemão
que eu sei o conceito, a pronúncia e a escrita-
sobre 'representação' e 'sublime'
quando o resultado saiu
eu peguei o meu e de uma amiga
e ele deixou um recado para ela.
eu fiquei doida.
não pelo recado, mas pela nota.
com toda ética fui reclamar
e ele disse 'você pode mais que isso'.
toda semana eu via o professor alemão
organizamos eventos, discutimos textos
representamos o curso, como docente e discente
até que chegou o dia em que tive que dizer 'tchau'.
ele já me chamava de mari
eu já não o detestava como no início.
quando ouvia rumores de que ele
se envolvia com alunas
isso não afetava minha opinião sobre ele.
sempre houve uma relação de poder,
mas de respeito ou talvez minha feiura,
minha nerdice ou minha inocência
não deixavam eu notar qualquer falta
de caráter.
para ter a admiração do professor alemão
eu refazia trabalhos por míseros 0,3 pontos,
porque ele me parecia o mais exigente
e competente leitor e pesquisador.
lhe faltava a didática, mas aprendi muito com ele.
em meu último dia presente na graduação
ele escreveu
'querida mari,
você não deixa só o vazio da sua ausência
mas deixa uma maçã reluzente em minha mesa.
como seu professor, como coordenador
do curso de letras, é um orgulho
saber de sua aprovação no mestrado
em teoria literária da unicamp,
minha disciplina, meu lar, minha universidade.
quando der, apareça, sentirei saudade'
esse recado mudou mais ainda
minha percepção sobre o professor alemão.
três anos depois eu o encontro num congresso
e digo que fui aprovada no doutorado,
ele me diz 'agora você me deu um bosque
cada encontro é um eco, é um passeio'
eu lhe digo que não estou tão feliz
porque não é o mesmo orientador
então ele diz 'a unicamp pode ser sua casa,
mas a unifesp é seu lar e aqui você
nunca será rejeitada'.
eu preciso aprender a me superar,
mas uma coisa eu aprendi
meu professor alemão
sempre será meu professor,
porque ele me ensina o que está
além da teoria literária,
ele tem um enorme coração.
eu não tenho conteúdo para escrever
um livro como o do chico,
mas um poema ou uma canção eu consigo:
meu professor alemão.

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