30 de março de 2017

cascas

a hesitação
o olhar
as mãos trêmulas,
que fotografam.
o suar frio
a respiração ofegante

são atos de fala,
testemunhos.
nós: leitores do silêncio.

18 de março de 2017

Ilana

Acabo de assisti uma palestra performática com Ilana. Ilana esteve na minha banca de mestrado. Ilana me disse "sua pesquisa é muito interessante, e ninguém conhece ela melhor do você, defenda suas ideias até o fim", isso me deixou tranquila. Eu agradeci e perguntei: qual o seu nome? Ela respondeu: Ilana. Quando estava na graduação, minha orientadora falava muito de Ilana - sua amiga. Ilana era uma desconhecida, brilhante. Por dez segundos não tive o que dizer à Ilana, meus pensamentos rememoraram todo meu percurso e tudo que ouvi sobre Ilana e agora ela me elogiava e estávamos próximas, só pude dizer "obrigada", não vi mais Ilana. Ao ouvi que Ilana participaria do ciclo "em obras", logo aceitei o convite para participar também, no ciclo estariam mulheres talentosíssimas e a oportunidade de ouvi-las era uma honra. Duas semanas antes do ciclo começar, Ilana e eu dividíamos a mesma sala de aula, ela no pós-doutorado e eu iniciando o doutorado. Nos encontramos no banheiro, mas ela não me reconheceu. Li que a tese de doutorado de Ilana recebeu o famoso e raro "com louvor" e foi recomendada pela Academia Internacional de Cinema.
Em sua palestra performática, Ilana disse que "Ilana" é um nome comum na comunidade judia. O ato de nomear e ser nomeado é importante para os judeus. Não sei mais se o nome identifica. Procurei o nome e sobrenome de Ilana e no google apareceu a imagem de outra Ilana, essa outra Ilana dá aulas no departamento de antropologia da Universidade de Columbia. Ilana gostou da minha pesquisa porque estudei os modos de testemunho poético na obra de Tamara Kamenszain, uma escritora judia argentina (a herança de um exílio que constitui o eu, cuja a história é passada pela palavra, é uma premissa para os judeus). Atualmente, Ilana estuda os diários de David Perlov, também judeu. Não sei mais qual o cruzamento dessas histórias.
Ilana contou em sua palestra que esteve em Tel-Aviv, conversou com a esposa de Perlov e recebeu mais diários, estes escritos. Ilana não sabe o que fazer com isso. A história do outro é preciosa. O texto de Perlov era o que a viúva tinha de Perlov. A letra, o modo de expressar-se. O que era importante e valia o registro. O era banal e valia o registro. Não sei mais qual a distância entre textos orais e escritos, mas sei porque Ilana ficou desconfortável. Ilana fez a viagem para Tel-Aviv com a família. Seus pais são judeus, não foi por acaso que a nomearam Ilana. Ilana voltou para o Brasil. Seus pais ficaram em Tel-Aviv. Ilana tem dois textos impenetráveis, os diários de Perlov e as cartas de seu tio avô - escritas em iídiche - ainda sim, é partindo desses textos que Ilana faz sua palestra. Ilana está sozinha, acompanhada de memórias.
Depois de ouvir Ilana fiquei imaginando como seria a oficina com ela no dia seguinte. A caminho de casa, no metrô, encontro uma senhora. Ela me pergunta "sabe como vou à estação Fradique Coutinho?", eu respondo "pegue o metrô no sentido Consolação, faça baldeação na estação Paulista, siga o fluxo e pegue outro metrô no sentido Butantan", vejo que a senhora continua perdida e minha percepção se confirma quando ela diz "preciso dar sinal para o metrô parar?". Digo a senhora "só me segue, eu te deixo lá", então ela me diz "obrigada, estou indo ao encontro de minha filha: Ilana". Pergunto "faz tempo que a senhora não vem a São Paulo (percebi pelo sotaque e obviamente pela pergunta sobre o sinal nas estações)?", então ela responde "faz tempo que não venho ao Brasil, moro em Tel-Aviv, sou judia". Penso "não pode ser". Nosso diálogo foi ficando interessante, então a senhora me contou que seus pais eram judeus, vieram para o Brasil, e que moraram no Rio de Janeiro durante anos, mas quando a filha decidiu estudar cinema, eles foram para Tel-Aviv. Por lá ficaram e a filha decidiu voltar.
Lembrei do sotaque carioca de Ilana lendo seu texto na palestra, lembrei de Ilana dizendo que sua mãe procurou por muito tempo um casaco em Tel-Aviv; a senhora usava um casaco pomposo e está muito calor em São Paulo. Não me aguento e pergunto "faz quanto tempo que a senhora mora em Tel-Aviv?" e ela responde "seis anos, por quê?", eu explico que a cidade mudou, etc, etc e então chegamos ao destino da senhora. Quando nos despedimos eu digo "o nome de sua filha é Ilana Feldman, né?" e ela diz "não, é Ilana Goldstein". Dessa vez Ilana me reconheceu.

16 de março de 2017

ciclo universitário

o sonho do puxa saco
é ter quem puxe seu saco
a tristeza do puxa saco
é não ter um saco para ser puxado
a impaciência de quem não puxa saco
é conviver com tanto puxa saco
quem não puxa saco é odiado pelo puxa saco
porque quem puxa saco não entende
quem não puxa saco
no fim é muito saco pra puxar

memória

nos é proposto
um exercício:
escrever sobre
a memória
do outro,
eu escrevo
sobre a sua
você escreve
sobre a minha

quando eu era
criança
lembro da minha
mãe
tentando jogar-se
do carrro em
movimento,
depois que minha
irmã nasceu.

quando eu era
adolescente
meus pais se
divorciaram,
fui morar numa
casa de madeira,
infestada de cupins
no inverno a casa
soava estalos

às vezes eu ia
para casa da minha
avó
seu quintal tinha
piso de madeira,
eu insistia em plantar
flores no chão
que não era terra,
chovia, eu afofava os pés

de quem são
essas memórias?
um de nós
emudeceu,
são duas histórias.
como vamos
cumprir o exercício?
não há o que contar,
escreva, somos
espectros fugidios.





6 de março de 2017

cabelo

leu num outdoor
"seus cachos
florescem cultura"
depois disso
entrou no vagão
do metrô
e a sua frente
de costas
havia um homem
sentado.
seus cabelos
lembravam
as raízes
de uma árvore.
as pontas,
loirinhas,
refletiam o brilho
solar, mas estava
nublado.
parecia tão jovem,
mas era um senhor
que ao levantar
para descer
em sua estação
de destino,
não florescia,
frutificava
com seus dreads.
pobre menina
de cabelos lisos.