Mariane Tavares[1]
A primeira vez que li, eu
mesma, um livro inteiro tinha seis anos. Lembro-me de tudo, estava na primeira
série do ensino fundamental e a professora nos levou à biblioteca. Ela nos
deixou livres e disse que poderíamos escolher qualquer livro que quiséssemos.
Eu olhei, olhei e olhei até encontrar “O primeiro amor de Laurinha”, de Pedro
Bandeira, esse foi o livro que escolhi. Todos começamos a ler o livro na escola
e depois teríamos que justificar nossa escolha (acho que me identifiquei com a
menina estranha desenhada na capa). Li o livro inteiro no mesmo dia. Amei ler.
Depois li muitos livros de Pedro Bandeira, como: “A droga do amor”, “A droga da
obediência”, entre outros. Passados vinte anos, agora sou doutoranda em teoria
e história literária: que loucura!
Antonio Candido em seu
texto “Direitos humanos e literatura” afirma que a literatura é um direito da
humanidade, pois o ser humano não passa um dia sequer sem ficcionar ou fabular
algo sobre a vida e nesse sentido a literatura age na formação do caráter dos
sujeitos. No início, Candido apresenta o que são direitos humanos e refere-se
aos direitos à alimentação, à moradia, à saúde, à justiça, à liberdade, à
crença, à opinião, ao lazer e à educação; para o sociólogo e crítico literário
esses direitos devem ser assegurados porque garantem a sobrevivência física do
ser humano, bem como sua integridade e capacidade intelectual. Desse modo a
pergunta que surge é: a literatura, interpretada como arte de forma ampla, no
que diz respeito à educação, não seria também um direito do ser humano?
Naturalmente o ser humano faz literatura em todo tempo, ao contar uma história,
ao ouvir uma música, ao ler um poema e assim vai construindo suas relações de
humanização.
A
literatura permeia toda a cultura, seja no folclore, nas lendas, nos cordéis,
nas piadas e nos livros – onde há uma complexa produção intelectual –, logo não
é possível que o ser humano, em sua vivência e relacionamentos seja capaz de
viver sem alguma espécie de manifestação literária. Para Antonio Candido “a
literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando
nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e
afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais,
estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação
dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate,
fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” (1989, p.
113); a definição que Candido dá para o papel da literatura inclui uma ideia
formativa, de construção da personalidade e por isso ela é tão importante
porque por ela e através dela o sujeito pode transformar o mundo, nela ele vive
vários mundos conscientemente ou não. Na reflexão proposta por Candido a
literatura humaniza e a humanização é “o processo que confirma no homem aqueles
traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do
saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a
capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve
em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e
abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante” (1989, p. 117).
Compreendendo
que a literatura está além do texto literário, mas que sua principal manifestação
vem a partir dele para humanização do ser, surgem duas perguntas: como lidar
com os altos índices de analfabetismo no Brasil? Qual a importância do
professor de literatura na escola?
Em 2016
vários jornais como Folha de SP, Estadão, G1 divulgaram notícias falando sobre
analfabetismo. Em fevereiro publicaram que 27%[2]
(13 milhões aproximadamente) dos brasileiros são analfabetos, um levantamento
do Instituto Montenegro em parceria com o Instituto Ibope afirma que pessoas
que passam até oito anos na escola não conseguem reconhecer o que é ironia e
não sabem diferenciar notícia de opinião. Também no mês de fevereiro publicaram
que apenas 8%[3]
das pessoas em idade propicia para o trabalho são capazes de interpretar letras
e números e se expressar através deles. Em junho, Luiz Ruffato, também em um
grande veículo de comunicação, publicou que um em cada três[4]
brasileiros adultos não sabe ler e escrever e que educação com qualidade no
Brasil é privilégio de uma elite mandatária. Em agosto o governo de Michel
temer suspendeu o programa[5]
nacional de combate ao analfabetismo. Em outubro Sertanópolis[6],
no Paraná, por pouco não pôde eleger seu candidato mais representativo nas
eleições porque ele foi considerado analfabeto funcional. Enfim, em novembro o
Pnad (Pesquisa Nacional por amostra de domicílios) junto com o IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que a taxa de analfabetismo no
Brasil em relação a 2015 diminuiu[7],
mas ainda é alarmante, principalmente na região norte do país; ao mesmo tempo
torna-se contraditório pensar que de lá vem as principais lendas do folclore
brasileiro e também grandes escritores como Milton Hatoum e Max Martins.
O
analfabetismo no Brasil não impede o indivíduo apenas de ter acesso à
literatura, mas o impede de ter acesso básico a muitas coisas. O indivíduo não
leitor não pode tomar um ônibus, não pode assinar um contrato, não pode
participar de processos seletivos, não pode candidatar-se a cargos públicos
entre muitas outras atividades. Quando o direito à literatura é negado, o
indivíduo é privado de muitos outros direitos. A literatura não inicia a partir
da escrita, mas da leitura. Um escritor escreve porque há um leitor e se não há
leitor, não há porque ter escritor. Dentre as muitas crises pelas quais a
literatura já passou, a crise do leitor é contínua e vem se reconfigurando.
Roland Barthes já pensava sobre o leitor em “O prazer do texto” quando afirmava
que a escrita sem leitura é como uma voz sem sonoridade, pois no texto só o
leitor fala, isso significa que o que o autor deseja comunicar nem sempre é o
que o leitor vai interpretar, segundo o semiólogo francês no texto há pelo
menos seis vozes a serem ouvidas: a voz do leitor, a voz da pessoa, a voz da
empiria, a voz da ciência, a voz do simbólico e a voz da verdade. No emaranhado
de vozes o leitor vai decodificando o texto e o texto tem muitas linguagens,
mas se o indivíduo não é leitor ou se é leitor e não sabe decodificar, ele
novamente deixa de ter acesso ao cânone e passa para o que é considerado a
“nova literatura” disponível por meio dos “booktubers”, que a apresentam com a
máxima da coloquialidade.
Esse
leitor-não-leitor só fará esse movimento se tiver acesso à tecnologia. É um
indivíduo que, mesmo não tendo acesso a uma educação de qualidade,
economicamente falando tem acesso à internet e tem computador em casa, é um
perfil mais voltado à região sudeste do país, mas não significa que nessa
região não tenham pessoas que não têm acesso a nenhuma tecnologia; da mesma
maneira que nas demais regiões do país certamente tem quem tem acesso a todos
esses aparatos. A primeira dificuldade do sujeito que está preocupado com o
analfabetismo no país é identificar os analfabetos, assim como a dificuldade do
professor de literatura é identificar nas salas de aula lotadas quem são seus
alunos leitores-não-leitores. Questionários não ajudarão no processo, mas ao
encontrar um caminho, o segundo passo é descobrir como fazer com que leitura e
tecnologia dialoguem. É reconhecer o que os analfabetos e os
leitores-não-leitores têm ao seu redor e pode auxilia-los no reconhecimento do
que já sabem e do que podem usar como ferramentas no processo de
ensino-aprendizagem.
Dado esse
cenário, somados a negação do Estado em proporcionar educação de qualidade para
todos, o professor de literatura precisa usar a teoria a seu favor e a
experiência para transformação da realidade do aluno, ele não pode esquecer que
a literatura é um direito humano e seu sonho deve ser ver seus alunos de seis e
sessenta anos lendo e compreendo livros como “O primeiro amor de Laurinha” ou
“A metamorfose”, se Franz Kafka.
Referências
CANDIDO, Antonio. Direitos
Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
[1]
Doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.
[2]
Acessado em 20/02/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2016/02/analfabetismo-ainda-atinge-27-dos-brasileiros-e-desafios-sao-grandes.html
[3]
Acessado em 22/02/ 2016. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/02/29/no-brasil-apenas-8-escapam-do-analfabetismo-funcional.htm
[4]
Acessado em 18/06/2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/15/opinion/1466026241_322188.html
[5]
Acessado em 19/08/2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/08/1807683-governo-temer-suspende-programa-nacional-de-combate-ao-analfabetismo.shtml
[6]
Acessado em 30/10/2016. Disponível em: http://eleicoes.uol.com.br/2016/noticias/2016/10/05/com-candidato-considerado-analfabeto-cidade-do-pr-pode-ter-nova-eleicao.htm
[7]
Acessado em 26/11/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/taxa-de-analfabetismo-cai-pelo-quarto-ano-no-brasil-mas-sobe-na-regiao-norte.ghtml
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