6 de fevereiro de 2017

A teia de aranha: literatura, política, tecnologia e sonho


Mariane Tavares[1]

A primeira vez que li, eu mesma, um livro inteiro tinha seis anos. Lembro-me de tudo, estava na primeira série do ensino fundamental e a professora nos levou à biblioteca. Ela nos deixou livres e disse que poderíamos escolher qualquer livro que quiséssemos. Eu olhei, olhei e olhei até encontrar “O primeiro amor de Laurinha”, de Pedro Bandeira, esse foi o livro que escolhi. Todos começamos a ler o livro na escola e depois teríamos que justificar nossa escolha (acho que me identifiquei com a menina estranha desenhada na capa). Li o livro inteiro no mesmo dia. Amei ler. Depois li muitos livros de Pedro Bandeira, como: “A droga do amor”, “A droga da obediência”, entre outros. Passados vinte anos, agora sou doutoranda em teoria e história literária: que loucura!
Antonio Candido em seu texto “Direitos humanos e literatura” afirma que a literatura é um direito da humanidade, pois o ser humano não passa um dia sequer sem ficcionar ou fabular algo sobre a vida e nesse sentido a literatura age na formação do caráter dos sujeitos. No início, Candido apresenta o que são direitos humanos e refere-se aos direitos à alimentação, à moradia, à saúde, à justiça, à liberdade, à crença, à opinião, ao lazer e à educação; para o sociólogo e crítico literário esses direitos devem ser assegurados porque garantem a sobrevivência física do ser humano, bem como sua integridade e capacidade intelectual. Desse modo a pergunta que surge é: a literatura, interpretada como arte de forma ampla, no que diz respeito à educação, não seria também um direito do ser humano? Naturalmente o ser humano faz literatura em todo tempo, ao contar uma história, ao ouvir uma música, ao ler um poema e assim vai construindo suas relações de humanização.
A literatura permeia toda a cultura, seja no folclore, nas lendas, nos cordéis, nas piadas e nos livros – onde há uma complexa produção intelectual –, logo não é possível que o ser humano, em sua vivência e relacionamentos seja capaz de viver sem alguma espécie de manifestação literária. Para Antonio Candido “a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” (1989, p. 113); a definição que Candido dá para o papel da literatura inclui uma ideia formativa, de construção da personalidade e por isso ela é tão importante porque por ela e através dela o sujeito pode transformar o mundo, nela ele vive vários mundos conscientemente ou não. Na reflexão proposta por Candido a literatura humaniza e a humanização é “o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante” (1989, p. 117).
Compreendendo que a literatura está além do texto literário, mas que sua principal manifestação vem a partir dele para humanização do ser, surgem duas perguntas: como lidar com os altos índices de analfabetismo no Brasil? Qual a importância do professor de literatura na escola?
Em 2016 vários jornais como Folha de SP, Estadão, G1 divulgaram notícias falando sobre analfabetismo. Em fevereiro publicaram que 27%[2] (13 milhões aproximadamente) dos brasileiros são analfabetos, um levantamento do Instituto Montenegro em parceria com o Instituto Ibope afirma que pessoas que passam até oito anos na escola não conseguem reconhecer o que é ironia e não sabem diferenciar notícia de opinião. Também no mês de fevereiro publicaram que apenas 8%[3] das pessoas em idade propicia para o trabalho são capazes de interpretar letras e números e se expressar através deles. Em junho, Luiz Ruffato, também em um grande veículo de comunicação, publicou que um em cada três[4] brasileiros adultos não sabe ler e escrever e que educação com qualidade no Brasil é privilégio de uma elite mandatária. Em agosto o governo de Michel temer suspendeu o programa[5] nacional de combate ao analfabetismo. Em outubro Sertanópolis[6], no Paraná, por pouco não pôde eleger seu candidato mais representativo nas eleições porque ele foi considerado analfabeto funcional. Enfim, em novembro o Pnad (Pesquisa Nacional por amostra de domicílios) junto com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que a taxa de analfabetismo no Brasil em relação a 2015 diminuiu[7], mas ainda é alarmante, principalmente na região norte do país; ao mesmo tempo torna-se contraditório pensar que de lá vem as principais lendas do folclore brasileiro e também grandes escritores como Milton Hatoum e Max Martins.
O analfabetismo no Brasil não impede o indivíduo apenas de ter acesso à literatura, mas o impede de ter acesso básico a muitas coisas. O indivíduo não leitor não pode tomar um ônibus, não pode assinar um contrato, não pode participar de processos seletivos, não pode candidatar-se a cargos públicos entre muitas outras atividades. Quando o direito à literatura é negado, o indivíduo é privado de muitos outros direitos. A literatura não inicia a partir da escrita, mas da leitura. Um escritor escreve porque há um leitor e se não há leitor, não há porque ter escritor. Dentre as muitas crises pelas quais a literatura já passou, a crise do leitor é contínua e vem se reconfigurando. Roland Barthes já pensava sobre o leitor em “O prazer do texto” quando afirmava que a escrita sem leitura é como uma voz sem sonoridade, pois no texto só o leitor fala, isso significa que o que o autor deseja comunicar nem sempre é o que o leitor vai interpretar, segundo o semiólogo francês no texto há pelo menos seis vozes a serem ouvidas: a voz do leitor, a voz da pessoa, a voz da empiria, a voz da ciência, a voz do simbólico e a voz da verdade. No emaranhado de vozes o leitor vai decodificando o texto e o texto tem muitas linguagens, mas se o indivíduo não é leitor ou se é leitor e não sabe decodificar, ele novamente deixa de ter acesso ao cânone e passa para o que é considerado a “nova literatura” disponível por meio dos “booktubers”, que a apresentam com a máxima da coloquialidade.
Esse leitor-não-leitor só fará esse movimento se tiver acesso à tecnologia. É um indivíduo que, mesmo não tendo acesso a uma educação de qualidade, economicamente falando tem acesso à internet e tem computador em casa, é um perfil mais voltado à região sudeste do país, mas não significa que nessa região não tenham pessoas que não têm acesso a nenhuma tecnologia; da mesma maneira que nas demais regiões do país certamente tem quem tem acesso a todos esses aparatos. A primeira dificuldade do sujeito que está preocupado com o analfabetismo no país é identificar os analfabetos, assim como a dificuldade do professor de literatura é identificar nas salas de aula lotadas quem são seus alunos leitores-não-leitores. Questionários não ajudarão no processo, mas ao encontrar um caminho, o segundo passo é descobrir como fazer com que leitura e tecnologia dialoguem. É reconhecer o que os analfabetos e os leitores-não-leitores têm ao seu redor e pode auxilia-los no reconhecimento do que já sabem e do que podem usar como ferramentas no processo de ensino-aprendizagem.
Dado esse cenário, somados a negação do Estado em proporcionar educação de qualidade para todos, o professor de literatura precisa usar a teoria a seu favor e a experiência para transformação da realidade do aluno, ele não pode esquecer que a literatura é um direito humano e seu sonho deve ser ver seus alunos de seis e sessenta anos lendo e compreendo livros como “O primeiro amor de Laurinha” ou “A metamorfose”, se Franz Kafka.

Referências
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.




[1] Doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.
[3] Acessado em 22/02/ 2016. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/02/29/no-brasil-apenas-8-escapam-do-analfabetismo-funcional.htm
[4] Acessado em 18/06/2016. Disponível em:  http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/15/opinion/1466026241_322188.html
[5] Acessado em 19/08/2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/08/1807683-governo-temer-suspende-programa-nacional-de-combate-ao-analfabetismo.shtml
[6] Acessado em 30/10/2016. Disponível em: http://eleicoes.uol.com.br/2016/noticias/2016/10/05/com-candidato-considerado-analfabeto-cidade-do-pr-pode-ter-nova-eleicao.htm
[7] Acessado em 26/11/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/taxa-de-analfabetismo-cai-pelo-quarto-ano-no-brasil-mas-sobe-na-regiao-norte.ghtml


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