11 de novembro de 2023

Luísa

Tudo começou (?) essa semana quando constatei que não fui a professora que Luísa merecia. Eu simplesmente não estava pronta. Talvez, para a maioria das pessoas, eu fui, sim, a professora que Luísa merecia. Aquela que dava aulas excelentes a ponto de sustentar quatro horas ininterruptas, todas as manhãs de segunda-feira, com uma turma de 25 adolescentes, todos, com o desejo à flor da pele, sobretudo após uma pandemia.

Ainda que houvesse um aluno ou outro que não gostasse de mim, nenhum era capaz de dizer que minhas aulas não eram boas. Várias vezes eu dizia "vocês estão aqui para aprender, e eu também, a gente se gostar só vai tornar o processo mais fácil". [Dar uma boa aula é suficiente? Não é o mínimo? Como ser a professora que cada aluno merece?]

Um único professor é diferente para cada turma. Dar aula é atuar, performar, e não importa se o conteúdo é o mesmo, a turma faz o professor. Às vezes apenas um aluno molda toda a aula do professor. Outras vezes o professor consegue delimitar e não permite que o aluno o atravesse. Isso foi o que fiz com Luísa até essa semana, embora há um ano ela não seja minha aluna.

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A primeira vez que ouvi Luísa falar, perguntei de onde ela era, havia um sotaque meio doce, malemolente que poderia ouvir por longos períodos, mas, ao mesmo tempo, me irritava porque me convidava ao descanso e eu queria movimento, ação. Luísa era de Minas Gerais, vivia, aqui, em São Paulo. Luísa logo no início disse que amava poesia [me cativou aí, mas eu resisti, é claro]. Os alunos ao redor diziam que Luísa era poeta. Como eu era a professora de literatura, talvez ela quisesse me ouvir dizer "jura? Lê um poema seu pra gente", contudo, eu só agradeci a apresentação. Toda vez que é a primeira vez eu peço para que os alunos se apresentem falando aquilo que eles consideram importante que eu saiba. É curioso observar: quando eles se sentem realmente livres para falar de si, não sabem o que dizer.

[Como eu apresento Luísa para que ela tome forma. É pequena e sorri grande. Tem cabelos castanhos encaracolados, cujas pontas são loiras. Sua pele é clara. Se veste como adulta ou ao menos como eu me vestiria. Faz carinho no cabelo dos amigos enquanto estão no intervalo. Escreve cartas de amor.]

Um dia, na pausa entre uma aula e outra, Luísa veio me mostrar uma de suas cartas. Não sei dizer ao certo porquê, mas era como se eu conhecesse o destinatário [posteriormente descobri que o conhecia]. Devido à essa impressão, eu disse "ele não gosta de você como você gosta dele". Ele era comprometido, ela também. Luísa já sabia tudo que a impedia, o que eu disse era óbvio. O movimento dela em minha direção, era uma tentativa de entender o que fazer com o amor latente e a frustração, uma vez que o lance naquele momento não daria em nada. 

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Nos três primeiros meses de aula, com qualquer turma, eu crio uma espécie de barreira invisível que demarca muito bem até onde um aluno pode ir comigo. O que ele pode falar ou não. Sobre a aula nada o restringe, mas sobre outros assuntos, sim. E mesmo quando é sobre a aula, tem de saber como falar, é como se nas "entrelinhas" eu também exigisse uma performance da parte deles. Eu tendo a olhar fixamente, me expresso facialmente de forma muito enfática. Para alguns, beiro a grosseria. Tudo isso é para garantir respeito. Passados os três meses eu faço piada, falo bobagem. Mas só depois de três meses, essa é a regra. Luísa sacou de cara que aquilo era um personagem, não esperou três meses.

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Em uma das várias aulas de reposição aos sábados, Luísa se atrasou, mas Júlia, uma de suas amigas, disse "não se preocupe, é sua aula, ela virá, vai cruzar a cidade pra isso". Em seguida, mostrou para mim uma conversa no WhatsApp na qual Luísa dizia "não vou perder a aula da deusa, ela é perfeita". Achei engraçado. Fiquei envergonhada. Daí surgiu o apelido "deusa", toda vez que eu chegava à sala de aula os alunos naturalmente aquietavam-se e diziam "silêncio, a deusa está chegando" [nesse caso, deusa não tinha relação com beleza, mas sabedoria, eu acho.]

Nesse mesmo sábado letivo, todos desceram para o intervalo. A escola estava vazia. Ficamos só Luísa e eu na sala de aula e ela decidiu abrir a vida. Eu, em silêncio. [Luísa tem um jeito romântico de ler o mundo. Vê tudo com bondade. Sofre intensamente. Pensa demais. Se perde nas realidades que cria]. Eu só pensava "por que você me escolheu, Luísa? Por que está me dizendo essas coisas?". Tentei responder da melhor maneira, mas sem me vincular. [Isso é possível?]

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Quando digo que não fui a professora que Luísa merecia, o leitor deve se perguntar "o que ela merecia?". Eu não sei. Só sei que não fui. Eu nunca li um texto de Luísa. Quando essa era a tarefa, ela escorria pelas minhas mãos feito água. Eu podia sentir a temperatura da ideia e me refrescar, mas nunca pude beber. [Eu não queria que os alunos tivessem medo de entregar tarefas pelo alto grau de exigência, mas uma vez um aluno me disse "a gente se prepara e quer entregar algo grande pra você porque a gente sabe que diariamente aquilo que você entrega pra gente é grandão". Fiquei comovida.]

De seminário não tinha como Luísa escapar. [A palavra escrita permanece, a palavra dita muitas vezes se esvai]. Quando ela analisou um poema impressionista, havia tanta paixão e energia, que a turma foi conduzida ao plano dos sonhos. Uma certa idealização que logo foi interrompida porque eu os trouxe de volta. Eu sempre ouço tudo o que um aluno tem a dizer, mas sempre rebato enfaticamente. Luísa ficou sem palavras, mas continuou sorrindo, meio sem graça.

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Luísa, eu não estava pronta. Não conseguia permitir que alguém acessasse minha intimidade como você fazia, não naquele ambiente. Eu tinha medo de ficar exposta. Tudo que falava era calculado, mesmo quando era algo sobre a minha vida que se emaranhava na literatura. O meu jeito de ler literatura era objetivante, racional porque eu não queria ser brega no amor, falar mais do mesmo. Até hoje quando me perguntam "como você se sente?", eu respondo "eu penso que". Se eu escrevo, não publico porque não quero que o mundo me veja nua.

Uma vez Luísa me disse que não procurava segurança no amor, procurava liberdade. [Por isso queria arriscar com o menino da carta que mencionei no início. Agora ele já estava solteiro e claramente também a desejava]. Eu perguntei "você não tem medo?" e sem hesitar ela respondeu "não". Lembro de admirar a coragem de Luísa naquele momento. 

Depois, repentinamente, entendi que um adolescente vive o para sempre sem a intenção de que seja para sempre, porque no fundo ele já sabe que não será, por isso tanta intensidade.  Me dei conta de que tudo aquilo poderia ser só uns beijinhos, umas carícias sem a proporção que estava enxergando na situação. E, de modo algum, a experiência perde o valor. Pelo contrário. A partir daí passei a ver Luísa gigante, como alguém disposta a sofrer para viver de verdade. Alguém que não trai o que sente, que sabe delimitar até onde a opinião do outro a afeta. [Ou, talvez, eu só estivesse projetando]

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No meu aniversário, Luísa trouxe farofa de Minas Gerais para mim, me deu bolo de chocolate e uma carta tão linda, guardei na minha caixa de memórias.

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No fim do ano fizemos a festa  de "Día de los muertos". Luísa não conseguiu participar, foi assediada no ônibus, enquanto ia para escola. Ela tinha só 17 anos. [São cenas como essa que me tornam dura]. Mais uma vez não consegui dar a atenção necessária, mas o menino da carta estava lá, o Peter Pan, como ela o chamava.

Depois desse episódio, Luísa foi afastada da escola por recomendação psiquiátrica. O vazio do assento de Luísa na sala de aula era maior em mim. Luísa perdeu o pai durante a pandemia. Luísa voltou apenas para apresentar o tcc. Luísa e suas amigas fizeram um trabalho lindo.

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No ano seguinte, ao dar aulas sobre poesia lírica, utilizei um dos vídeos de Luísa para explicar o que era poesia visual. Luísa me convidou para assistir um curta que ela produziu no curso de cinema. "Margaridas", tão sensível. Ao me ver na plateia ela pareceu surpresa, me disse que um dia vamos tomar café em Paris. Desde que conheci Luísa, nos abraçamos algumas, poucas, vezes. Essa foi uma delas.

Lembro dela comentando que tinha uma conta no Instagram somente para armazenar o que produzia em audiovisual. Vira e mexe eu procuro essa conta para ver bons vídeos. Para ver o que Luísa está vendo ou para ver o mundo como Luísa vê. E ela continua compartilhando histórias de amor. Amor nas suas várias manifestações.

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Em uma aula, Luísa comentou [de um modo quase ingênuo] que ficava extasiada, pensando como cabia tanto conhecimento em uma pessoa de estatura tão pequena como a minha. Penso o mesmo sobre ela no que diz respeito às emoções.

Talvez eu não tenha sido a professora que Luísa merecia porque Luísa, como a poesia, me desafia, me persegue e exige que eu me reinvente, que eu esteja disposta a desviar da linha riscada ou apagar fronteiras, romper limites, a ser mais e mais.

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Luísa, hoje sou mais do que fui ontem.