29 de março de 2013

Recanto



Acordou. Pôs meias nos pés e pensou o que fazer do dia. Separou um livro. Preparou o chá. Ao forno: pães de queijo. Abriu o roupeiro e visualizava sweaters, vestidos floridos, coletes, cachecóis, casacos xadrez, muitos shorts e calças de cintura alta, mas poucos jeans. Na dúvida entre vestir-se e pegar o bonde, digo ônibus, ou continuar em casa, pegou a colcha de retalhos e cobriu-se. Pensou: "vou ouvir música!" Clássica? Não sabe. Apenas pôs-se a ouvir o primeiro disco na vitrola. Pães de queijo prontos, chá, quer esquentar-se do frio que faz lá fora. Ao término, saiu de pijama e pegou o jornal. Pôs-se a ler, mesmo com a música tocando. Lia notícias sobre a juventude e pensava: "a que juventude pertenço? Juventude? Sou jovem?" Na madrugada em que dormia, sozinha, jovens morriam acompanhados. E hoje, em sua calmaria, ela lê ouvindo música clássica. Que jovem é essa? Fecha o jornal. Observa sua casa, pequenina, mas aconchegante. Vai à janela e vê jovens brincando com a neve. Jovens brigando. Jovens namorando. E enquanto observa algum riso lá fora, só consegue ver felicidade no casal de velhinhos, que está de mãos dadas, bem agasalhado, sentado num banquinho da praça de árvores secas, porque nem a natureza sorri. E ela está sozinha. Deixa de observar o fora e passa a observar dentro. Seus móveis ornamentados, num estilo provençal. Cores sóbrias. Flores. Uma estante repleta de livros. Lembra-se do livro que separou, ao pensar na primeira coisa do dia. Pôs seus óculos e iniciou a leitura. Foi assim que o tempo passou, e ela, sem dar-se conta, estava envolvida pela leitura. De repente pensou, feliz: "tenho 22, mas gosto de minha velha juventude". Foi assim que ela pôde se encontrar, nessa leitura que durou 30 anos, o que fará quando olhar-se no espelho? Talvez se agasalhe para ir à praça esperar um velhinho que lhe dê as mãos. Risos.
à Madame de Steal


se estou no Norte escrevo sobre a neve
se estou no Sul escrevo sobre o Sol
que me impede de estar no Norte e escrever sobre o Sol
ou estar no Sul e escrever sobre a neve?

Eles


Há alguns sábados à tarde não a via.
Tinha uma leve impressão de que não gostava de mim (normal, sempre penso isso das pessoas). Logo, não tinha a liberdade de me aproximar.
Sempre ouvíamos que não devemos nos misturar, culturas diferentes, crenças diferentes e muita coisa diferente sempre termina mal. Era o que ouvíamos. E assim começa a história.

Num domingo ela chega. Senta afastada do grupo. Está de mãos dadas com um rapaz que todos, mesmo alguns tentando disfarçar, outros escancarando o julgamento, olham dizendo "quem é ele?", "como assim? De mãos dadas?", "o que significa isso?", e como alguém, que nunca deu muita importância para o que os outros pensam ou dizem, ela sorria, como se fosse a adolescente mais feliz do mundo.
Ao terminar a celebração, ela levantou-se, de mãos dadas com ele, sorriu para todos, foi até e mãe e os três foram embora juntos (cena que se tornaria bela e frequente).

Mais um domingo, ela chega. Senta afastada do grupo. Está de mãos dadas. Ouve-se, vê-se murmurinhos, mas uma coisa intriga: seu sorriso. É um orgulho tão grande e uma felicidade resplandecente que ninguém entende. Observemos: ele tem piercing no nariz (na comunidade ninguém usa piercing), ele, como um estranho, deveria no mínimo sorrir, mas parece que está ali apenas para agradá-la. De qualquer forma, está ali. É o que importa para ela.

Um, dois, três, quatro, vários domingos. Criou-se uma simpatia. Algo mudou aparentemente. Críticas surgiram? Várias. Mas não importa. Já há uma simpatia. Um domingo diferente. Músicas bonitas, palavras sinceras e de repente alguém levanta a mão. Ela chorava e sorria. Era ele. Todos que a amavam sorriam. Se algo aparentemente tinha mudado, agora tudo mudaria.

Passou-se um tempo e agora ambos sentam no grupo. Ambos fazem tudo juntos. Agora pode ser que ele vá no domingo e ela não. Amizades verdadeiras foram consolidadas e percebeu-se que aquilo/aquele diferente pode ser bem melhor do que o comum, aprendeu-se com ele. Basta respeitar. Confiar. Acreditar.

Ele a pediu em casamento. Tão novos, mas completos. Sonhando e realizando. E ao lembrar daquele primeiro domingo, fica o sentimento de que tudo vale a pena, se você seguir amando e evidenciando isso com um sorriso.

9 de março de 2013

Um coração mau

Dificilmente ela reflete sobre coisas sérias ou aparentemente. Só escreve quando sente. Hoje sente dor. Perseguiram alguém querido e de repente ela entende o que significa impotência. Durante a perseguição o desespero toma conta, então liga para o esposo, desvia de um carro, desvia de outro, mas a certeza do assalto é terrível. Não aparecem policiais. E em meio a tanta dor, as pessoas dormem. São 04:03 da madrugada. O telefone toca e ela acorda, atende e ouve "Me assaltaram, levaram tudo" e muito choro. Corre angustiadamente para abrir o portão, preocupada, pergunta "machucaram você?" e aquela aflição toma conta do ar. Liga para polícia, conta detalhes, mas as cenas se repetem fixamente como se não parassem de acontecer. O esposo retorna e a única coisa que sente é gratidão, ainda assim, está tudo bem. Diante desse cenário ela se pergunta por que alguns homens escolhem ter um coração mau? Famílias inteiras choram o assassinato, o sequestro, o estupro, a violência e hoje sua família chora o assalto.
Era o carro que levava o bebê à escola, que levava à aula de canto, à casa de amigos, às viagens, ao serviço, à igreja. E onde está o carro agora? Em algum desmanche, talvez.
Mais ainda há a esperança de que homens de coração mau escolherão ter um coração bom. Ainda há esperança. Sempre há esperança. Mas por enquanto há tristeza.