11 de fevereiro de 2017

medo

às vezes me olho no espelho
aos poucos vou sentindo
a matéria, as vibrações
do meu corpo,
o correr do sangue nas veias
olho fundo nos meus olhos
me assusto.
se perguntam do que tenho medo
não sei o que responder,
talvez tenha medo de mim
sem a graça.
de olhar bem fundo, dentro de mim e
encontrar o que abomino.
tenho medo de perder a memória
medo da rejeição
medo de não ser a canção
que o outro precisa ouvir.
eu tenho medo de religiosos e
de deixar meu tempo ocioso.
medo de perder a linguagem e
dos meus pensamentos, que por vezes
se distanciam da verdade.
eu tenho medo da morte de quem amo,
mesmo sendo sobrevivente.
medo de não amar os vivos.
eu tenho medo do mundo não mudar e
de perder força ao longo do caminho,
medo da indiferença e
dos sonhos frustrados.
há quem tem medo
de que o medo acabe
o medo pode ser defesa,
mas o meu maior medo
é de que meus medos permaneçam.




9 de fevereiro de 2017

professor alemão

chico buarque
como o bom escritor
que cria do que vive
escreveu 'o irmão alemão'
eu não tenho tenho um
irmão alemão
eu não tenho uma
cidadania alemã
eu sei duas palavras
em alemão,
mas eu leio a tradução
de autores alemães.
eu tive um professor alemão.
em greves meu professor
alemão era chamado de nazista.
o professor alemão era íntegro,
quando o chamavam de nazista
ele se calava.
a cor de seus olhos, a cor de sua pele
seu português difícil de entender
denunciavam o lugar de onde vinha
e sua histórica herança.
no segundo semestre da graduação
eu tive aula com o professor alemão.
ele dava aulas de teoria literária.
eu falei de bertolt brecht e quase reprovei
depois falei de adorno e fui aprovada.
as meninas da minha sala
estudavam muito para dar respostas
certas na aula do professor alemão.
ele me irritava, mas elas achavam ele lindo
ele fazia perguntas simples
de um jeito tão complexo
que uns passavam vergonha ao responder
enquanto a sala inteira era silêncio.
no primeiro semestre
do último ano da graduação
eu tive aula com o professor alemão.
eu era outra leitora e ele outro professor.
eu não tinha vergonha de responder
e ele já sabia como perguntar.
eu participava do grupo de estudos
'literatura e psicanálise'
cujo coordenador era o professor alemão.
um dia, o filho do professor alemão
adoeceu, então ele me ligou e pediu
que eu dispensasse a turma.
as meninas ainda morriam de amores
por ele, queriam que eu passasse o telefone dele
sendo que eu nem sabia como ele tinha o meu.
ele disse que eu parecia confiável
então pediu meu número para minha orientadora.
um dia ele aplicou uma prova
- foi lá que eu aprendi o que era darstellung
e vorstellung, as duas palavras em alemão
que eu sei o conceito, a pronúncia e a escrita-
sobre 'representação' e 'sublime'
quando o resultado saiu
eu peguei o meu e de uma amiga
e ele deixou um recado para ela.
eu fiquei doida.
não pelo recado, mas pela nota.
com toda ética fui reclamar
e ele disse 'você pode mais que isso'.
toda semana eu via o professor alemão
organizamos eventos, discutimos textos
representamos o curso, como docente e discente
até que chegou o dia em que tive que dizer 'tchau'.
ele já me chamava de mari
eu já não o detestava como no início.
quando ouvia rumores de que ele
se envolvia com alunas
isso não afetava minha opinião sobre ele.
sempre houve uma relação de poder,
mas de respeito ou talvez minha feiura,
minha nerdice ou minha inocência
não deixavam eu notar qualquer falta
de caráter.
para ter a admiração do professor alemão
eu refazia trabalhos por míseros 0,3 pontos,
porque ele me parecia o mais exigente
e competente leitor e pesquisador.
lhe faltava a didática, mas aprendi muito com ele.
em meu último dia presente na graduação
ele escreveu
'querida mari,
você não deixa só o vazio da sua ausência
mas deixa uma maçã reluzente em minha mesa.
como seu professor, como coordenador
do curso de letras, é um orgulho
saber de sua aprovação no mestrado
em teoria literária da unicamp,
minha disciplina, meu lar, minha universidade.
quando der, apareça, sentirei saudade'
esse recado mudou mais ainda
minha percepção sobre o professor alemão.
três anos depois eu o encontro num congresso
e digo que fui aprovada no doutorado,
ele me diz 'agora você me deu um bosque
cada encontro é um eco, é um passeio'
eu lhe digo que não estou tão feliz
porque não é o mesmo orientador
então ele diz 'a unicamp pode ser sua casa,
mas a unifesp é seu lar e aqui você
nunca será rejeitada'.
eu preciso aprender a me superar,
mas uma coisa eu aprendi
meu professor alemão
sempre será meu professor,
porque ele me ensina o que está
além da teoria literária,
ele tem um enorme coração.
eu não tenho conteúdo para escrever
um livro como o do chico,
mas um poema ou uma canção eu consigo:
meu professor alemão.

6 de fevereiro de 2017

A teia de aranha: literatura, política, tecnologia e sonho


Mariane Tavares[1]

A primeira vez que li, eu mesma, um livro inteiro tinha seis anos. Lembro-me de tudo, estava na primeira série do ensino fundamental e a professora nos levou à biblioteca. Ela nos deixou livres e disse que poderíamos escolher qualquer livro que quiséssemos. Eu olhei, olhei e olhei até encontrar “O primeiro amor de Laurinha”, de Pedro Bandeira, esse foi o livro que escolhi. Todos começamos a ler o livro na escola e depois teríamos que justificar nossa escolha (acho que me identifiquei com a menina estranha desenhada na capa). Li o livro inteiro no mesmo dia. Amei ler. Depois li muitos livros de Pedro Bandeira, como: “A droga do amor”, “A droga da obediência”, entre outros. Passados vinte anos, agora sou doutoranda em teoria e história literária: que loucura!
Antonio Candido em seu texto “Direitos humanos e literatura” afirma que a literatura é um direito da humanidade, pois o ser humano não passa um dia sequer sem ficcionar ou fabular algo sobre a vida e nesse sentido a literatura age na formação do caráter dos sujeitos. No início, Candido apresenta o que são direitos humanos e refere-se aos direitos à alimentação, à moradia, à saúde, à justiça, à liberdade, à crença, à opinião, ao lazer e à educação; para o sociólogo e crítico literário esses direitos devem ser assegurados porque garantem a sobrevivência física do ser humano, bem como sua integridade e capacidade intelectual. Desse modo a pergunta que surge é: a literatura, interpretada como arte de forma ampla, no que diz respeito à educação, não seria também um direito do ser humano? Naturalmente o ser humano faz literatura em todo tempo, ao contar uma história, ao ouvir uma música, ao ler um poema e assim vai construindo suas relações de humanização.
A literatura permeia toda a cultura, seja no folclore, nas lendas, nos cordéis, nas piadas e nos livros – onde há uma complexa produção intelectual –, logo não é possível que o ser humano, em sua vivência e relacionamentos seja capaz de viver sem alguma espécie de manifestação literária. Para Antonio Candido “a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.” (1989, p. 113); a definição que Candido dá para o papel da literatura inclui uma ideia formativa, de construção da personalidade e por isso ela é tão importante porque por ela e através dela o sujeito pode transformar o mundo, nela ele vive vários mundos conscientemente ou não. Na reflexão proposta por Candido a literatura humaniza e a humanização é “o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante” (1989, p. 117).
Compreendendo que a literatura está além do texto literário, mas que sua principal manifestação vem a partir dele para humanização do ser, surgem duas perguntas: como lidar com os altos índices de analfabetismo no Brasil? Qual a importância do professor de literatura na escola?
Em 2016 vários jornais como Folha de SP, Estadão, G1 divulgaram notícias falando sobre analfabetismo. Em fevereiro publicaram que 27%[2] (13 milhões aproximadamente) dos brasileiros são analfabetos, um levantamento do Instituto Montenegro em parceria com o Instituto Ibope afirma que pessoas que passam até oito anos na escola não conseguem reconhecer o que é ironia e não sabem diferenciar notícia de opinião. Também no mês de fevereiro publicaram que apenas 8%[3] das pessoas em idade propicia para o trabalho são capazes de interpretar letras e números e se expressar através deles. Em junho, Luiz Ruffato, também em um grande veículo de comunicação, publicou que um em cada três[4] brasileiros adultos não sabe ler e escrever e que educação com qualidade no Brasil é privilégio de uma elite mandatária. Em agosto o governo de Michel temer suspendeu o programa[5] nacional de combate ao analfabetismo. Em outubro Sertanópolis[6], no Paraná, por pouco não pôde eleger seu candidato mais representativo nas eleições porque ele foi considerado analfabeto funcional. Enfim, em novembro o Pnad (Pesquisa Nacional por amostra de domicílios) junto com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgou que a taxa de analfabetismo no Brasil em relação a 2015 diminuiu[7], mas ainda é alarmante, principalmente na região norte do país; ao mesmo tempo torna-se contraditório pensar que de lá vem as principais lendas do folclore brasileiro e também grandes escritores como Milton Hatoum e Max Martins.
O analfabetismo no Brasil não impede o indivíduo apenas de ter acesso à literatura, mas o impede de ter acesso básico a muitas coisas. O indivíduo não leitor não pode tomar um ônibus, não pode assinar um contrato, não pode participar de processos seletivos, não pode candidatar-se a cargos públicos entre muitas outras atividades. Quando o direito à literatura é negado, o indivíduo é privado de muitos outros direitos. A literatura não inicia a partir da escrita, mas da leitura. Um escritor escreve porque há um leitor e se não há leitor, não há porque ter escritor. Dentre as muitas crises pelas quais a literatura já passou, a crise do leitor é contínua e vem se reconfigurando. Roland Barthes já pensava sobre o leitor em “O prazer do texto” quando afirmava que a escrita sem leitura é como uma voz sem sonoridade, pois no texto só o leitor fala, isso significa que o que o autor deseja comunicar nem sempre é o que o leitor vai interpretar, segundo o semiólogo francês no texto há pelo menos seis vozes a serem ouvidas: a voz do leitor, a voz da pessoa, a voz da empiria, a voz da ciência, a voz do simbólico e a voz da verdade. No emaranhado de vozes o leitor vai decodificando o texto e o texto tem muitas linguagens, mas se o indivíduo não é leitor ou se é leitor e não sabe decodificar, ele novamente deixa de ter acesso ao cânone e passa para o que é considerado a “nova literatura” disponível por meio dos “booktubers”, que a apresentam com a máxima da coloquialidade.
Esse leitor-não-leitor só fará esse movimento se tiver acesso à tecnologia. É um indivíduo que, mesmo não tendo acesso a uma educação de qualidade, economicamente falando tem acesso à internet e tem computador em casa, é um perfil mais voltado à região sudeste do país, mas não significa que nessa região não tenham pessoas que não têm acesso a nenhuma tecnologia; da mesma maneira que nas demais regiões do país certamente tem quem tem acesso a todos esses aparatos. A primeira dificuldade do sujeito que está preocupado com o analfabetismo no país é identificar os analfabetos, assim como a dificuldade do professor de literatura é identificar nas salas de aula lotadas quem são seus alunos leitores-não-leitores. Questionários não ajudarão no processo, mas ao encontrar um caminho, o segundo passo é descobrir como fazer com que leitura e tecnologia dialoguem. É reconhecer o que os analfabetos e os leitores-não-leitores têm ao seu redor e pode auxilia-los no reconhecimento do que já sabem e do que podem usar como ferramentas no processo de ensino-aprendizagem.
Dado esse cenário, somados a negação do Estado em proporcionar educação de qualidade para todos, o professor de literatura precisa usar a teoria a seu favor e a experiência para transformação da realidade do aluno, ele não pode esquecer que a literatura é um direito humano e seu sonho deve ser ver seus alunos de seis e sessenta anos lendo e compreendo livros como “O primeiro amor de Laurinha” ou “A metamorfose”, se Franz Kafka.

Referências
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.




[1] Doutoranda em Teoria e História Literária pela Unicamp.
[3] Acessado em 22/02/ 2016. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/02/29/no-brasil-apenas-8-escapam-do-analfabetismo-funcional.htm
[4] Acessado em 18/06/2016. Disponível em:  http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/15/opinion/1466026241_322188.html
[5] Acessado em 19/08/2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/08/1807683-governo-temer-suspende-programa-nacional-de-combate-ao-analfabetismo.shtml
[6] Acessado em 30/10/2016. Disponível em: http://eleicoes.uol.com.br/2016/noticias/2016/10/05/com-candidato-considerado-analfabeto-cidade-do-pr-pode-ter-nova-eleicao.htm
[7] Acessado em 26/11/2016. Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/taxa-de-analfabetismo-cai-pelo-quarto-ano-no-brasil-mas-sobe-na-regiao-norte.ghtml


3 de fevereiro de 2017

prepúcio

"Cortem-lhe a cabeça!"
disse a Rainha Vermelha.
Desesperado por não poder mais usar chapéus
o Chapeleiro Maluco
pediu ajuda à Rainha Branca.
Vendo que seria a maior beneficiada com o corte,
a Rainha Branca entrou em acordo
com a Rainha Vermelha.
Quando a ordem foi cumprida
uma irmã teve sorte no jogo
a outra teve sorte no amor.
Gotículas de sangue
penetraram o vestido da Rainha Branca,
de quem era o sangue?
O Chapeleiro percebeu que o país
das maravilhas cabia em quatro paredes.