1 de julho de 2019

democracia em vertigem


1
Quando eu tinha 22 anos Elena me apresentou a Petra. Petra me falava sobre Elena - sua irmã mais velha, que viajou para Nova York com o sonho de ser atriz de cinema - de um modo muito particular. Elena se suicidou.
2
Ao caminhar pela praia e pegar uma concha, ouço muitas vozes, mas ao me concentrar, consigo distinguir cada uma delas. Estranhamente a voz de Petra se assemelha a voz do meu avô.
3
Durante a minha infância eu ouvi repetidas vezes as seguintes frases: "ela é neta do Lula" e "se você chorar vão pensar que você é fraca porque é menina". O meu avô não gostava de se parecer fisicamente com o Lula, mas quando eu entendi quem era cada um deles, me punha a observar minuciosamente essa semelhança. 
4
Todas as vezes que eu senti vontade de chorar, saí correndo para o banheiro. Lá, eu encontrei muitas mulheres chorando também. Havia quem dissesse "chama a Mari porque ela vai nos representar, vai conseguir falar sem chorar" e eu falava.
5
Petra me presenteou com uma obra. As imagens em movimento estavam dispostas em ordem cronológica, mas caminhavam paralelamente entre o que é público e privado. Ela tem essa mania de mexer com minhas lembranças.
6
Em 2015 meu avô morreu, ele não viu o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A primeira vez que eu fui ao Museu da Resistência tinha 16 anos e em uma cela eu li "Dilma". A letrinha pessoal... sozinha eu chorei. Chorei quando ela disse "eu nunca temi a minha morte, mas temo a morte da democracia".
7
Faz apenas quatro anos que meu avô faleceu, mas aconteceu tanta coisa. Desde os três primeiros segundos, as imagens de Petra me levaram às lágrimas. No dia em que o Lula foi para São Bernardo, antes de ser preso, eu estava com meus amigos. Não consegui assistir ao noticiário. À noite nós fizemos uma fogueira, pegamos o violão e cantamos "Pra não dizer que não falei de flores", mas havia gente soltando fogos. 
8
Conforme vamos vivendo, vamos descobrindo e aprendendo mais sobre a vida, sobre quem somos, sobre as relações. Eu sou mulher. Eu sou pobre. Há gente mais pobre e mais rica do que eu. Eu sou branca. Eu sou bisneta de índio, neta de nordestino. Eu vivo em São Paulo. Eu estudei. Eu choro de tristeza e choro de alegria. Eu não comemoro a prisão de ninguém. Ninguém. Porque quando alguém é preso, eu sinto que falhei.
9
Alguns documentos foram criados para nos ajudar a viver. Leis. Constituição. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estatuto da Criança e do Adolescente. O humano pode ser desumano. Me parece óbvio que um criminoso, apresentadas as devidas provas, merece ser julgado e condenado, seja quem for. Mas a premissa da justiça é a isenção.
10
Todos têm uma história. O avô de Petra foi sócio de construtora. Meu avô dono de um boteco. A construtora fazia parte de um esquema de corrupção no país. Enquanto meu avô e eu jogávamos dominó e conversávamos sobre política, ele soltava pérolas como "você vai saber que algo é errado, se isso não deixar você dormir" ou "quem acha que muito sabe de nada sabe, ouça quem é diferente de você, troque, pondere e ensine".
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Meu companheiro brinca que eu serei presidente do Brasil. Eu queria ser artista como Petra, mas sou professora. Para alguns, doutrinadora e da balbúrdia. Nos últimos quatro anos posso dizer que aconteceu somente um fato politicamente estimulante "vira voto". Entre a esquerda, a direita e seus problemas, havia quem quisesse conversar e praticar a escuta ativa. Entender o outro. Pena que isso aconteceu depois de tudo. Tudo não é o bastante. 
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"O que fazer quando a máscara da civilidade cai e temos que encarar nossa própria imagem?" foi o que Petra me perguntou nos últimos três segundos de documentário. Eu voltei em cada imagem e me vi nas manifestações de 2013, 2015, 2016, 2018 sem camisa verde e amarela. Olhei o planalto, lembrei de quem amo e votou em quem rejeito. Não soube responder.
13
Enquanto a democracia levemente se enfraquece, o autoritarismo é como uma nuvem. Chove. As pessoas se sentem inseguras e pedem armas, outras se arrependem. Eu seguro um lápis e escrevo, esperando que se um dia alguém ver meu nome em uma cela de museu, eu esteja viva e essa pessoa livre porque a democracia resistiu.

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