'canta, minha filha,
mas em segurança'.
todo mundo aqui
beija na boca
de todo mundo.
mostrar a cara
para o brasil
e o peito
e o corpo inteiro
beijá-lo com batom
vermelho brasa
há coisa mais
íntima que ouvir
alguém compor
pra você?
27 de janeiro de 2024
gal
13 de janeiro de 2024
Veneza, idílica
Ao chegar a Veneza, em julho de 2022,
os raios solares incidem sobre as águas
do mar adriático
e o idílio da cidade captura o espírito.
Muitas línguas, muitos turistas
que, assim como eu, recebem o convite
das vielas labirínticas para se perderem
em outra temporalidade;
uma travessia por 1600 anos de história,
180 canais ou ruas d'água, 400 pontes
que expressam em suas ruínas
a coragem e a sabedoria dos italianos.
O cheiro da deterioração das algas da laguna
em contato com a atmosfera não fede,
por isso há avós, pais, filhos gondoleiros
remando sobre o bosque pantanoso.
Quando li em 2019 que as águas em Veneza
subiram quase dois metros,
senti que o homem pode
criar e destruir tudo que é belo.
Quando li em 2020 que, devido à pandemia,
os peixes voltaram aos canais de Veneza
senti o mesmo.
A primeira vez que li algo sobre a cidade
foi 'O mercador de Veneza', de Shakespeare
depois 'Morte em Veneza', de Thomas Mann,
nenhum dos dois italianos, mas
ambos me levaram a Dante Alighieri, Maquiavel, Boccaccio, Petrarca (saudades
das aulas de latim com a Bianca)
Pirandello, Italo Calvino, Umberto Eco, Ungaretti, Cesare Pavese, Primo Levi, Pasolini,
Croce, Gramsci, Agamben, Silvia Federici
depois assisti filmes do Fellini e do Bertolucci,
e, finalmente, minha paixão recente está
em Ferrante e Natália Ginzburg.
Essas pessoas fazem eu me estranhar
pra me sentir menos estrangeira no mundo,
é por isso que eu ouço italiano com alegria
e o falo com alegria dobrada;
ao observar as crianças sinto que quase posso compreender o que as torna italianas.
Fico encantada com barcos na 'garagem'
outra lógica de vida;
me emociona passar pela rua do partido comunista, lembrar da resistência antifascista
e ver a vida pulsando quando o vento
toca as roupas penduradas no varal.
Quero usar as máscaras carnavalescas
e experimentar a igualdade de classes.
Veneza, talvez em Roma eu fosse
muito nova para dimensionar tudo
que meus olhos podiam ver,
mas no presente eu estava pronta
pra você, no auge da minha maturidade
e equilíbrio, esse mesmo que
te mantém em pé, te sustenta.
Jamais você sucumbirá às águas,
porque elas não podem apagar
o que é inesquecível, teu idílio.
12 de janeiro de 2024
o fotógrafo
susan sontag afirma que
todas as fotos são memento mori'
para os ocidentais é imprescindível
não esquecer a finitude.
se fotografar é participar
da mutabilidade, da vulnerabilidade
da pessoa-coisa e cortar uma fatia
de momento para congelá-lo,
uma fotografia é o testemunho
da dissolução implacável do tempo.
efeméride
dia 12 de agosto de 2023
o poeta disse que é preciso
dosar o quanto se fala da morte,
(antes é preciso observá-la e,
de preferência, não usar a palavra
"morte" ao falar sobre ela)
livros com pouca ou muita morte
destoam da vida, mais difícil do que
pensar "como" falar sobre a morte
é o "quanto" falar sobre a morte.
dia 12 de agosto de 2015
meu avô faleceu, tão de repente.
são oito anos de uma ausência
que luta contra os 24 anos
de presença dele em minha vida.
ora 24 parece pouco diante do porvir
ora 24 parece muito, pois poderia ter sido
menos. a morte do outro tem disso:
afetar nossa percepção do tempo.
(considero uma injustiça do divino
não poder ver minha própria morte,
mas nunca morri, talvez quando acontecer
eu veja, então a injustiça, na verdade, seria
o impedimento de falar sobre ela com vocês
quando acontecer)
dia 12 de agosto de 2009
cleber e eu começamos a namorar
15 anos juntos pulsando vida.
ora parece muito, ora parece pouco
o amor, como a morte, tem disso:
afetar nossa percepção do tempo.
9 vezes eu escrevi a palavra "morte"
4 vezes eu escrevi a palavra "vida"
sinais de que não sou poeta, tanto
pela dosagem quanto pela menção direta.
10 de janeiro de 2024
fim do mundo [chile]
1.
quando chegamos à ruta del fin del mundo algo estranho passou a acontecer. no primeiro dia, dormimos um ao lado do outro com nossos celulares debaixo do travesseiro. tínhamos um compromisso às 05h00 da manhã: pegar um barco que nos levasse ao glaciar serrano. devido a este passeio para ver geleiras, perdemos um voo porque tivemos de alterar os dias das passagens aéreas e isso não pode ser feito com compras que foram pagas com milhas. foi realmente trabalhoso conseguir os ingressos para o barco. dou estes detalhes para que compreendam quão importante era acordar no horário. colocamos o alarme do celular para despertar. passadas as horas, eu acordei e ele não, eu me arrumei e ele dormia. quando o acordei, ele reclamou, dizendo que havia colocado o celular para despertar, no entanto, ao verificarmos o horário, notamos que seu celular estava uma hora atrasado, sendo que nesta região do mundo não há horário de verão. chegamos a tempo para pegar o barco. durante os três próximos dias, todas as noites o tempo mudava. os celulares estavam no mesmo horário ao dormirmos, mas, ao acordarmos, o celular dele estava uma hora atrasado, automaticamente. o que ocorre com o tempo neste lugar? a questão é o tempo ou ele e eu estamos em tempos diferentes e esta materialização ocorre no fim do mundo?
2.
por toda a estrada há altares. túmulos. há mais mortos que vivos. quase não vemos casas. neblina. neve.
estamos em um filme de suspense? só que ao invés de estar escuro está tudo branco. se o carro quebrar, vamos morrer congelados, o socorro não chega ao fim do mundo.
3.
o salar do atacama é a maior fonte de lítio do mundo, com este minério pode-se fabricar baterias de ion-lítio, ideais para a produção de carros elétricos. os multimilionários voltaram os olhos para o salar do atacama, mas eles não veem. não veem a espiritualidade do lugar, uma energia que nos conecta à nossa ancestralidade e a nós mesmos. o dinheiro desconfigura a paisagem, esgota recursos, exila os povos. parece que la ruta del desierto se ha cambiado con la ruta del fin del mundo. fim, é onde não dá pra seguir adiante? [mas é possível permanecer] ou é onde tudo acaba? tudo acaba?
4.
dizem que aqueles que desejam se suicidar, comumente elegem o costanera como um lugar preterido. uma torre circular que aponta para o alto, semelhante a um foguete al tiro. na parte interna, todos se veem no vácuo. são muitos andares. a cada x minutos alguém salta. por todo o prédio há mensagens como si necessitas de ayuda llama (+00) 000-0000-0000. é possível que a escolha pela morte nesse local seja uma última tentativa de chamar a atenção. mas qual o motivo da excessiva quantidade? [atente-se para o excessiva, como se escolher morrer fosse normal, baseado no número y] li que os chilenos se sentem enclausurados pelas cordilheiras.