19 de dezembro de 2019

contato

a gente se engana
ao crer que a tecnologia
nos mantém em contato.
meu celular caiu na piscina
meu chip não funciona,
fui à agência e pedi um novo
mas não conseguiram manter o número 
eu não sei o telefone de ninguém 
de memória 
não fazemos mais parte do mesmo ciclo 
eu saí dos grupos de whatsapp 
hoje em dia quase ninguém usa facebook
a gente mora em são paulo
e demorou trinta anos pra se encontrar
imagina agora?
ao invés de ficar
observando story no instagram 
eu vou pegar meu primeiro aparelho
e salvar no novo 
os contatos que não estavam no chip,
gente que eu deixei ou que escapou.
voltamos a nos falar quando você quiser
meu número continua na sua agenda,
isto é, será que você salvou?
será que aconteceu algo
com seu celular também?
não importa, você nunca foi de perder
tempo com essas coisas. 
vou voltar a escrever contatos 
na minha agenda de papel,
entretanto minha casa pode pegar fogo
ou posso perdê-la em alguma mudança 
definitivamente não há lugar seguro 
para guardar seu contato
até na memória porque se eu envelhecer 
posso ter alzheimer e aí nem de você
vou me lembrar, 
todavia minha aluna disse que está 
para descobrir a cura,
no fim, é só o que eu tenho de você 
uma recordação bonita.
mesmo que fosse um contato de um dia
que demorou trinta anos 
pode não ocorrer novamente
então a gente se engana
ao crer que a tecnologia 
nos mantém em contato,
quem faz isso é o querer do Tempo.

27 de novembro de 2019

o poema me levará no tempo,
quando eu já não for eu,
disse sophia.
eu escrevo de presente
na expectativa de que a precisão
das palavras
torne o abstrato concreto,
embora isso nunca aconteça.
o poema fará de mim outro,
como ler um texto borrado
pela água da chuva.

22 de novembro de 2019

eu queria entender
porque sua opinião 
me importa tanto.
embora eu saiba 
que as ondas do mar
vem e vão,
que você é uma 
passagem
e o fim não tem término.

12 de novembro de 2019

confissão

todos temos medo, uns mais, outros menos.
dentre os meus, confesso ter medo de me expor e de não ser lembrada.
estou no processo de entender que não é possível ser tudo, somente inteira.
há poucos dias sofri profundamente pensando que sou apenas útil, mas não querida. 
todo dia eu penso que ser humano não tem valor monetário, mas o mundo em que vivemos insiste em nos coisificar, portanto tenho serventia, mas não gero afeto. olha que loucura! 
quanta dificuldade em ver beleza em mim, mesmo ciente de que ela vem de dentro para fora, e crer que as pessoas me amam exatamente como sou. 
quanta cobrança em ser mais engraçada porque ninguém suporta estar perto de quem só fala sobre assuntos sérios.
quanta dificuldade em me aceitar, não me comparar, me olhar no espelho e sorrir.
está complicado administrar o tempo. cuidar dos outros, sobretudo de mim.
não escrevo para aliviar ou para que alguém diga "mari, você é linda e querida!"
escrevo para me curar, para, quem sabe, gerar identificação com quem sente o mesmo.
insisto em me fazer perguntas que nunca terão resposta, como fazer a diferença na vida de alguém.
vez ou outra imagino como seria o mundo sem mim e como quem convive comigo se sentiria.
tenho a impressão de que sou quase mítica, quando o que eu quero ser é humana.
quando eu for mais generosa comigo já não haverá expectativas a serem satisfeitas.
a vida vai ficar mais bonita e as relações mais verdadeiras.

4 de novembro de 2019

É sério?

o que me faz levar uma pessoa a sério: gostar de chocolate; ouvir pagode alto para zoar com os amigos; dançar forró e ser um dos últimos a sair da pista; ter strogonoff como prato favorito; falar, falar, falar; chorar assistindo a uma peça, seja de tristeza ou alegria; se interessar por política; rir à toa; ser leve, embora a vida seja dura; ler poesia e sentir que isso muda o mundo; escutar ativamente; ter segredos e ser verdadeiro ao mesmo tempo; ter a criatividade como um princípio; tornar o outro visível; agregar; assumir seus erros; tocar algum instrumento; se preocupar com a sociedade, a cultura, o território; ter um vício que não prejudique ninguém; meditar; procurar fazer o bem; querer conhecer todo canto e toda gente; admirar uma língua ou sotaque diferente; experimentar o novo; não ter tanto medo; ser responsável sem ser chato; ser alguém que aprecie a humanidade e encontre sua beleza. por enquanto é só.
basta uma gota para Paris se afogar
a água do mar bate, bate, bate
nas pedras brancas.
há casas submersas
será que Atlândida existiu?
nós vamos destruir Paris
nós vamos destruir tudo
não, nós não vamos destruir Paris
Paris é tão bonita na minha memória
embora nunca tenha ido lá.
isso ninguém destrói
só o mar quando eu me afogar.
eu vejo dois casais,
um prestes a casar
outro se conhecendo
Paris atravessa suas histórias,
como ir para lá e não lembrar
um do outro, deles?
finalmente desembarquei
chove
basta uma gota para Paris se afogar.

3 de novembro de 2019

carta ao rafael

não, essa não é uma carta ao rafael
eu não vejo o rafael há anos.
em 2005 eu escrevi uma carta ao rafael
o rafael era meu amigo
ele tinha segredos
e tudo bem
mas tem segredo que não pode ser segredo
entre amigos
se não deixa de ser amigo.
por causa do rafael
eu aprendi a jogar cs
as meninas tinham ciúmes de mim.
tenho boas lembranças dele.
pensava como seria o dia
em que o reencontraria
há anos sem contato sem notícia
enfim chegou o dia
não o reconheci.
mas ele me viu, me chamou pelo nome
e tirou da carteira um papel roxo.
o dia em que escrevi sobre ele,
sobre nossa amizade,
não imaginava que aquele papel
do meu caderno favorito
resistiria tanto tempo e mais
que as palavras ali escritas permaneceriam.
rafael era ótimo em química e física
eu, em literatura, história e filosofia
um dia analisamos uns poemas.
- você ainda tem essa carta, eu disse
- eu entendi o poema
que seja eterno enquanto dure.
nos despedimos.


29 de outubro de 2019

usp, 2011

vai ser assim
um dia você vai encontrá-la
ela ainda vai ter franja
agora, rabo de cavalo
junto ao corpo dela um bebê em sling
ela estará com macacão boy friend
comprando hortaliças no armazém
você não a reconhecerá
até que solte o cabelo
seu único pensamento será
por que eu não a conheci antes?
ela vai notar sua presença depois
cumprimentará você e sua esposa,
e mais uma vez cada um segue para um lado

Amigo

Quem é aquele seu amigo que te diz que a franjinha não ficou legal; que o texto que você escreveu sobre o amor ficou cafona; que te falta coragem para viver; que seu macacão é roupa de criança e você já tem 29; que se você fizesse tudo o que pensa o mundo estaria mil vezes melhor; que sabe que você odeia ser chamada de musa, mas depende de quem fala; que te manda mensagem sem dizer "oi" só pra indicar um filme; que não aparece em nenhum evento no qual você fala, mas é o mais interessado em saber como foi; que está cansado de debater a política brasileira, mas o faz por você; que vai às muitas festas, já não te chama e insiste em mandar foto dizendo "um dia você vai tá por aqui e vai ser mais legal"; que entende suas expressões faciais e ri de todas elas enquanto os demais acham pura grosseria; que te dá esmalte preto porque você adora pintar as unhas do pé com essa cor; que pega livro seu emprestado, não devolve, e você não cobra porque quer que ele tenha lembranças suas, sobretudo se o tema for literatura, história e feminismo; que a conversa é tão boa que você nem sente o tempo passar; que ri de qualquer coisa e te causa inveja porque você leva o mundo muito a sério; que faz você se sentir menos maluca; que te dá conselhos duros; que entende que ele não pode saber de tudo e te recomenda terapia; que percebe quando as coisas não estão bem, mesmo você colocando tudo que aprendeu no teatro em ação; que sabe que o tempo é finito e que nem tudo está como era pra ser; que compreende o desencontro da vida; que se afasta para solitude; que já não existe.

23 de outubro de 2019

regras de sobrevivência ao instagram

1. Seguir apenas pessoas com quem me relaciono cotidianamente
2. Evitar filtros em imagens
3. Ter uma lista de melhores amigos só para falar besteira
4. Manter a conta aberta, mas filtrar seguidores
5. Não ultrapassar o alarme de 1h diária
6. Falar apenas quando realmente tenho algo importante a dizer
7.  Publicar o que quero independente do que outros vão pensar
8.  Apoiar a não visualização de curtidas (viva à autoestima!) e reclamar por não poder ver o que meus amigos estão curtindo


21 de outubro de 2019

ode ao desencontro no tempo

uma caneca é uma memória.
à chave do seu lugar de solitude: um chaveiro.
o filho do Sebastião vem te fazer companhia
até que você desbrave detalhadamente
o mundo, o humano, gigantes
que cabem na sua imensidão.


19 de outubro de 2019


saudade é o que escorre
é você discar um número
e se lembrar que a pessoa
com quem você queria falar não está mais lá.
não estar com alguém, podendo estar
não é saudade.
saudade é incomensurável
nenhum afeto se compara.
não permita Deus que eu viva
com Alzheimer 

18 de outubro de 2019

Amália


a minha memória me leva a lugares que eu já percorri
a objetos que eu já toquei
ambos, intactos ou em cacos.
a minha imaginação me leva a lugares inexistentes,
a sentir impossíveis-afetos-potentes
ambos, por pessoas que passam mas ficam

16 de outubro de 2019

vivacidade

é ver uma adolescente dançar
na sala da coordenação pedagógica
porque ainda não foi doutrinada
a conter a vida

15 de outubro de 2019

sentidos

cegueira (visão)
quando só você não vê
quão linda é

surdez (audição)
quando você tem escuta seletiva
só ouve as mentiras sobre você 

tato
quando você deseja o abraço
de quem só não quer você 

olfato
quando você passa perfume para outros
enquanto a pele que importa é a sua

paladar
quando você não se permite experimentar
porque se acostumou com o mesmo sabor

o portal do arco dourado

o portal do arco dourado
parece bonito
é bonito
há quem o cobice
imaginando que ao atravessá-lo
tudo vai mudar
(e vai mesmo)
por isso muitos não têm coragem.
do outro lado poucos dizem "vem"
uma vez feita a passagem
o sujeito fica marcado
feito escravo
feito gado
mas só lembram dos nomes
escritos nos bancos de praça
nas árvores ou nos cadeados
(freud explica esse símbolo,
essa prisão)
o ferrete marca
o criminoso,
aquele que ousa voltar
do portal do arco dourado
querendo recomeçar,
recuperar a individualidade
perdida;
ser visto além da marca,
dançar, ser livre.
o portal do arco dourado
parece bonito
é bonito
porque ninguém fica só.


14 de outubro de 2019

Instagram

a rede social onde uma galera
ganha dinheiro para destruir
a autoestima alheia

sinapse

refém daquilo que crio
imagino que você possa ser
amigo daquela menina
que todo mundo gosta,
menos eu,
prevejo a amizade de vocês no facebook
vejo você preferindo ela a mim.
ela já escreveu um livro, eu não
ela bebe, eu não
vocês manifestaram interesse
na mesma roda de samba,
aquela que eu não fui.
é questão de tempo...
são paulo foi tão injusta conosco
ao tardar o nosso encontro,
ele aconteceu quando estávamos
em ritmos diferentes.
vai ser de repente,
o nosso tempo é curto
depois a presença vai ser escolha
então verei vocês dois rindo,
conversando como se nada mais
no mundo importasse,
no meu café favorito da cidade -
aquele onde eu gostaria de ter ido
com você.
ela recebeu muito mais do que eu
poderia dar.


poliamor

é você ter tudo
e ainda sentir
falta

28 de setembro de 2019

criação literária e amigos

todos os meus amigos são meus personagens literários. alguns, poucos, sabem quais nomes e características lhes atribuí em histórias semi-inventadas.
durante muito tempo eu me cobrei a criação de personagens únicos, que fossem totalmente criados por mim, mas não fui bem sucedida. finalmente me conformei com tal impossibilidade e decidi, como, talvez, um bom autor que orquestra a vida das pessoas, até seus pensamentos, ressignificar a história dos meus amigos.
desde já, oriento, leia este texto sem se procurar, pode ser que você pense que você é outra pessoa. pode ser que em uma situação na qual você optou pela ação "x" eu tenha achado uma verdadeira burrice e então você vai descobrir que se tivesse me consultado, sua vida estaria muito melhor. ou pode ser que na descrição minuciosa de minhas expressões faciais, em momentos que vivemos juntos, nada precisa ser dito entre nós, mas o mundo precisa saber. minha grande pena é ter visto gente na rua uma vez, escrever sobre ela e saber que provavelmente nunca mais a verei novamente.

sp-g
viver em uma cidade como sp é ter a certeza de que você nunca vai encontrar uma pessoa a não ser que você tenha algo em comum com ela. e ainda que você tenha muito em comum, pode ser que você nunca a encontre. tudo parece tão perto e ao mesmo tempo tão distante. eu gosto de viver em sp, você também, eu não gosto do trânsito e você não gosta da distância. será que em nova york seria diferente? eu acho que nunca moraria em nova york, a não ser que fosse estudar. acho que em nova york eu não te encontraria, porque em sp eu te encontrei sem te encontrar. eu tenho essa mania de tornar tudo profundo e nem todo mundo quer mais amigos na vida, às vezes os que temos já são suficientes. eu não sei nada sobre você, mas você é meu amigo e tudo bem se eu não for sua amiga. obrigada por ser um bom ouvido, ouvir minhas críticas e histórias de voluntariado. acho que o que eu mais gosto em você é que você parece não se preocupar com nada "sossegado", é exatamente oposto a mim nesse sentido. eu não bebo porque considero que tudo que afeta minha razão me faz mal, mas me pergunto como deve ser viver uma vida leve, sair, beber, rir e não pensar em nada... um dia você disse que era "preocupado", talvez aquilo que fazia com que eu me identificasse com você fosse isso, mas na verdade não. eu não sei o que temos em comum, além dos anos '90 e toy story.

sp-d
você é um presente-presente, me encanta quão doce você é a cada encontro. impressionante como todo e-mail trocado, e as poucas vezes que nos vemos (essa cidade engole nosso tempo), é inteiro. toda conversa contigo é muito intensa e fico feliz por você não se cansar de mim por isso. eu bem que tento ser divertida, mas quando mal percebo estou falando de algo sério e você parece gostar de mim com esse jeitinho. você tem um quê de poeta, é artista. toda vez que penso em você vejo um pássaro entre a entrada e saída da gaiola: que não haja grades que te prendam. eu não sei se temos muito em comum, mas o que temos em comum é joia rara, pedra preciosa que sustenta uma amizade por anos, ainda que estejamos no primeiro. você sabe que meu maior medo é ter alzheimer. mesmo se eu nunca mais pudesse te ver, eu jamais me esqueceria de você, jamais esqueceria de todas as cores dos seus cabelos e óculos.

Nua com galocha

Caro leitor, antes que você inicie esta leitura, creio que se faz necessário o aviso: este, não é um conto erótico!


Quero lhes falar sobre duas mulheres excêntricas e um rapaz: Marina, Patrícia e Gustavo. Marina estava prestes a se casar e sua maior preocupação não estava relacionada à lua de mel; ela, com seus fetiches, estava bem animada sexualmente. Seu maior temor também não estava relacionado aos bens, como nunca teve muito dinheiro, poderia casar em comunhão parcial de bens, aparentemente, tudo que viesse com o casamento era lucro. Quando perguntavam à moça se ela mudaria de nome, ela respondia que estava disposta até a isso, deixar de ser Marina Tenório Sobral, para ser Marina Tenório Ormo - o sobrenome mais bizonho que ela já tinha ouvido em toda a vida. Tudo que normalmente aflige as mulheres, nem passava perto da angústia de Marina, ela era muito confiante "se um dia ele gritar comigo e vir para cima: dou-lhe um pé na bunda e denuncio à polícia", "aqui o diálogo é franco, se um dia ele me trair: eu o capo enquanto dorme". O que deixava Marina mais desesperada ao pensar no matrimônio era não entender como legalmente ela poderia introduzir à certidão de casamente duas cláusulas. A primeira: jamais lavar banheiro enquanto ambos permanecessem juntos, a segunda: jamais enxugar a louça. Cada uma dessas atividades lhe causava um verdadeiro pavor, lavar o banheiro era importante, mas era tão nojento, que ela passava mal, sentia náuseas e ânsia de vômito só de cogitar a possibilidade de meter a mão na privada.Por outro lado, enxugar a louça era uma tarefa completamente inútil.
Marina trabalhava com Patrícia e Gustavo trabalhava para Patrícia. Enquanto Marina compartilhava  sua inquietação com Patrícia no horário do almoço, Henrique ouviu a história e disse para a moça não se preocupar, ele limpava a casa toda e dava tudo certo, o companheiro de Marina faria o mesmo. A mulherada que compartilhava a mesa ficou enlouquecida, cada uma dizia uma coisa "jura, você limpa a casa? Oh, onde eu errei na educação do meu filho?", "Ai, que demais, nunca vi um homem que limpasse a casa", "Você está de parabéns, viu, você limpa porque não tem uma auxiliar doméstica?"
"É exatamente sobre isso que estou falando", disse Marina, "é normal um homem limpar a casa, gente, ele também não suja? Esses comentários de vocês só reforçam meu desespero, a maioria das pessoas acha que homem não deve limpar a casa, muito menos lavar banheiro ou enxugar a louça". Henrique acha normal e Marina se apegava ao fato de que seu companheiro, por ter a mesma idade de Henrique, teria a mesma atitude.
Finalmente Patrícia falou "amiga, relaxa, lavar o banheiro é tão divertido, você passa um hidratante no cabelo, coloca uma touca, tira toda a roupa e começa a lavar. Enquanto você toma banho e esfrega o banheiro fica limpinho, só não pode esquecer: tem que usar luvas e galochas porque a água sanitária deixa nossos pés e mãos ressecados." Em seguida mais três mulheres responderam eufóricas pela identificação "Nós também lavamos o banheiro nuas com galocha!!!", já Henrique às gargalhadas dizia "Quando a louça é enxugada, fica com cheiro de comida, se tem escorredor, para que enxugar? Marina, se seu futuro marido descumprir as regras do banheiro e da louça, tem uma mulher que auxilia minha família domesticamente, posso indica-la, é a Pilar". Todos riam ao imaginar as amigas nuas com galochas, vassoura na mão, sabão em pó e muita animação para limpar o local mais podre da casa.
Cada vez mais Marina ouvia o que os colegas diziam e sabia que a qualquer momento teria uma crise de ansiedade, devido ao acúmulo de pequenos surtos que frase por frase causou em si. Por que diabos homens são elogiados por limpar a casa? Por que as mães têm dificuldade em educar os filhos para também realizar atividades domésticas? Por que a profissão de auxiliar de casa, é mais comum entre mulheres? Então Patrícia respondeu: "Amiga, a sensação de liberdade ao lavar o banheiro nua com galochas é indescritível, coloca o som bem alto, pega um espumante e joga água de lá pra cá, você sabe que eu comecei a namorar o Gustavo assim..." Todos com uma expressão facial surpresa. "Gente, o Gustavo é o meu auxiliar doméstico, eu sou super feminista e vocês sabem (hahaha). Um dia eu desmarquei uma reunião e aproveitei para lavar o banheiro. Gustavo chegou para limpar a casa, quando de repente abriu a porta e me viu linda, plena e maravilhosa: nua com galocha. Ficou envergonhado, saiu correndo. Depois foi deixando recadinhos no banheiro, um jovenzinho que transita entre a ingenuidade e a descoberta dos prazeres da vida. Que inicie comigo, meu bem. Agora eu tenho um namorico e alguém que limpa a casa de graça para mim, quer algo melhor?".
A tensão passou, todos riram descontroladamente. Marina ficou leve e decidida, agora ela casa.

5 de julho de 2019

A escola

Dia de avaliação geral do bimestre, a professora Núbia entra na sala para aplicar a prova. Sempre sorridente e muito elegante, ela observa cada um dos alunos enquanto dispõe os materiais sobre a mesa. São 37 exames e Núbia confere cada um deles, para que nenhum aluno seja prejudicado. Durante o bimestre, ela tentou gerir a sala de modo que as melhores competências de cada aluno fossem desenvolvidas em favor da turma como um todo, visando um desempenho de excelência.

Cerca de 12 minutos depois, ainda havia alunos conversando, mas finalmente ela pôde desejar um bom dia e escrever algumas instruções na lousa. Para Núbia alguns alunos são especialmente marcantes, ela direciona o olhar para Bárbara e sabe de seu potencial, mas, de repente, Henrique pergunta "--Avaliação? Hoje tem avaliação? Como assim?", Bárbara responde "--Como assim, como assim? Menino, você não vai crescer, não? Deixa de ser avoado, não quero que a prova atrase".
Núbia pede calma e explica a Henrique "Querido, eu avisei a semana toda, a avaliação é hoje e não haverá nenhuma alteração"; "Nossa, Bárbara, onde está o seu bom humor, nem parece a Bárbara de todo dia, eu tinha esquecido da prova, calma.... Relaxa, professora, está tudo sob controle, eu sou sossegado e preocupado, então vai dar certo", disse Henrique. Já Núbia, pensou "adolescentes, sempre tão contraditórios". 

Henrique era um excelente aluno, não era de estudar a ponto de copiar, ler e reler o texto inúmeras vezes, mas tinha um espírito inquieto, muito questionador, prestava bastante atenção e quando o assunto era história indígena, era ele quem pedia o silêncio da turma. Quando Núbia falava sobre Henrique no Conselho de Classe, dizia que ele era um menino distraído, mas muito articulado, sabia transitar bem entre os grupos e continuamente conversava com os colegas sobre problemas sociais e cultura, ao mesmo tempo contava piadas e fazia todos rirem. Um rapaz amigável.

"Professora, quando vai começar? Estamos perdendo tempo", disse Bárbara, então Núbia respondeu "Temos duas aulas, meu bem, são apenas dez questões e você é competentíssima". Bárbara era uma menina focada. De manhã estava na escola, ao chegar em casa à tarde tinha horários cronometrados. Almoçava ao meio dia, das 13h30 às 14h30 lia as notícias do jornal, em seguida resolvia todos os exercícios extracurriculares. Quando Núbia perguntava "O que é o Reino Monera?", imediatamente Bárbara respondia "É aquele formado por bactérias ou cianobactérias, suas células não têm organelas, portanto são procariontes." Núbia aclamava "Parabéns, Bárbara, Parabéns", e enchia a boca para falar da aluna brilhante, menina dedicada e bem humorada, sabe a hora de estudar e a hora de contar piadas, equilibradíssima.

Finalmente, quando Núbia se prepara para ler a prova para os alunos, explicar e distribuir, eis que se levanta Vitor, o aluno impecável. Sempre de camisa e calça social, arrumado pela mamãe, vocacionado à política, óculos e aparelho dental - que o deixava com uma aparência "nerd" e com uma fala engraçada - Vitor começa "Antes de mais nada, eu quero dizer, professora, que sou contra provas como avaliação, é urgente pensarmos novos tipos de avaliação, eu me sinto coagido, não é uma prova que mede nosso conhecimento, estamos todos constrangidos, pois todos somos avaliados como iguais quando isso não é verdade. Esse sistema é cruel e opressor". Sem paciência, Núbia responde "Você está certo, sugira algo melhor e vamos adiante". Silêncio. "Nenhuma sugestão, gente, alguém? Do contrário, vamos começar", disse Núbia.

Os alunos se ajeitam, uma folha para rascunho. Um lápis, uma borracha e caneta preta em cima da mesa. Henrique grita "Poxa, estou sem caneta, alguém empresta?", Bárbara "Será possível? Toma". Então César, muito educado diz "Professora, perdão pela minha indelicadeza em interromper, mas este processo está muito cunctatório, não conseguimos ser desasnados. Vitor tentou, mas não a empederniu e neste exato momento eu acabo de perceber que alguém me gualdripou, meu estojo desapareceu, estou impossibilitado de realizar a prova." Diante da difícil situação, Núbia diz "O que o César disse é muito grave, turma, alguém viu o estojo dele? Que desagradável! Eu espero que esse estojo apareça, porque do contrário..."

"Olha pra cá, olha pra cá... eu juro que não fui eu, mas aquele não é o estojo do César?", disse Henrique apontando em direção à mesa de Marina. Núbia "Gente, a Marina, será? Não acredito, mas ela só dorme". César "é claro que não foi ela quem fez isso comigo, professora, colocaram na mesa dela para me graçolar, mas isso é inócuo, não me abala. Podemos começar". "Finalmente, podemos mesmo?", disse Núbia. "Não, não, não a prova é dissertativa ou de múltipla-escolha? Objetiva ou interpretativa? Sou melhor com questões mais eruditas, professora", disse César.

Núbia retoma as orientações, impaciente. "Coloquem, nome, número, série e a data de hoje". "Professora, coloca o nome onde?", disse Marina despertando."Chega, eu desisto, apenas leiam o que está na lousa e comecem a prova", disse Núbia.

Acaba a energia. Henrique "sabia que a prova não era hoje".


3 de julho de 2019

uma genuína tristeza em viver (ou sobre a responsabilidade que temos com a vida do outro)

Em 31 de maio de 2019, sob direção de Ava DuVernay - premiada diretora afro-americana com filmes como "Selma" e "Middle of Nowhere" - estreou na plataforma streaming Netflix "When they see us" ou "Olhos que condenam", de acordo com a tradução brasileira. A série, com quatro episódios de aproximadamente 1h30min, conta-nos a história dos Cinco do Central Park: Korey Wise, Antron McCray, Yusef Salaam, Raymond Santana e Kevin Richardson. Em 19 de abril de 1989, Trisha Meili foi brutalmente estuprada enquanto corria no parque. Cinco adolescentes, quatro negros e um latino, que viviam no Harlem, em Nova York, foram acusados de cometer o crime, no entanto a polícia usa de meios ilegais para obter suas confissões - por exemplo, coagi-los a depor durante 42h sem a presença de um responsável maior de idade ou advogado, sem alimentá-los e agindo com violência.
A promotora do caso, Linda Fairstein, mulher branca, hoje com 72 anos e premiadíssima com seus romances policiais, pós a condenação dos garotos, - para fazer carreira - precisava resolver o caso com agilidade, pois a mídia não parava de veicular notícias a respeito. O sangue e o sêmen encontrados nas roupas de Trisha Meili não correspondia a nenhum dos acusados, e, ainda assim, todos foram condenados devido aos depoimentos onde foram induzidos a confessar o crime. Entretanto, as cinco histórias não coincidiam e não havia testemunhas. Um deles, com 16 anos, foi preso em uma penitenciária de adultos e cotidianamente apanhava dos demais presidiários, os outros ficaram em reformatórios. Durante os 12 anos em que ficaram em privação de liberdade, a promotoria propôs redução de pena para que eles confessassem, mas nenhum o fez. Finalmente, após cumprirem a pena, o verdadeiro estuprador, um homem branco, confessou o crime em detalhes, as provas forenses foram verificadas e confirmadas.
Quando se é inocente "toda culpa é energia estagnada, não muda o passado e não molda o futuro", disse uma das mães ao filho. O que fazer quando se sofre uma injustiça simplesmente por ser quem se é, negro? (Lembro de Rafael Braga e tantos outros). Depois de solucionado o crime, o Estado inocentou os rapazes, mas o prefeito Michael Bloomberg se recusou a pagar indenização. Dentre todas as figuras possíveis que critica os meninos, destaca-se a figura de Donald Trump à época apenas um magnata e hoje o homem mais poderoso do mundo (sintomático, não?). Foi em 2014, com o governo de Barack Obama, que cada um dos meninos, agora homens, recebeu cerca de 41 milhões de dólares para refazer suas vidas. Mas, afinal, não há dinheiro que possa restituir o que eles não viveram. Nos últimos dias, com a repercussão da série, Linda Fairstein e os demais policias envolvidos no caso dizem estar sofrendo com o julgamento do público. Em alguma medida eles estão sendo tratados com a mesma crueldade midiática que trataram os meninos, com a diferença de que são adultos e têm mecanismos para lidar com toda a violência que recebem.
Coincidentemente ou não, em vias de assistir tudo ao mesmo tempo, o documentário "Sem pena" (disponível: https://www.youtube.com/watch?v=NcuCPkp8SHY) não trata especificamente de crimes de cunho racial, mas de pessoas que também são presas injustamente. O Brasil é o 3º país com maior população carcerária do mundo e muitas vezes, para cumprir estatísticas, o judiciário, desobedece os devidos procedimentos, sai a condenar voluntariamente pessoas inocentes. Segundo Ferrajoli (2006), o processo penal não se trata de um instrumento da comunidade política para auxiliá-la na perseguição de “criminosos”, mas um trunfo que pessoas acusadas de praticar determinadas condutas criminalizadas possuem para que sejam submetidas, enquanto indivíduos, a um procedimento racional, previsível e protetor de seus direitos enquanto pessoa humana. Esta verdadeira estruturação de princípios indispensáveis começa com o princípio do estado de inocência, que afasta o ranço social estigmatizante que eleva à condição de um condenado em sentença transitada, em julgado um sujeito que está apenas sendo acusado. Nesse sentido, são inúmeros os casos nos quais pessoas que supostamente cometeram o mesmo crime, cumprirem penas diferentes ou conviverem com outras que cometeram crimes muito mais prejudiciais à sociedade em juízo de valor; isso, ao invés de solucionar, reproduz a máquina de delitos.
No documentário, chama atenção também, o fato das melhores universidades do país no que tange ao Direito, ofertar mais disciplinas voltadas ao direito do consumidor do que ao direito humano, pois isso sinaliza a ideologia por trás do sistema: o apagamento de minorias e da dignidade da vida. E pior: com o discurso de que a promove. Todo este cenário que é cinematográfico, mas dialoga e muito com a realidade gerou em mim uma genuína tristeza em viver. Como se no fim nada valesse a pena. Por outro lado, como nos falta o senso de responsabilidade diante do outro. Que comecem os meus clichês, talvez eu esteja hiperdimensionando tudo porque eu sinto demais, e eu preciso compartimentar as crises para não enlouquecer.
Nos anos de 2012, 2013, 2014 eu fui voluntária no Instituto Papel de Menino e todo primeiro domingo do mês eu passava a tarde com os meninos da Fundação Casa de Franco da Rocha. Conheci essa ONG através da Silvana, uma das mulheres mais admiráveis que tenho a honra de conviver. Todo aquele cenário de apagamento de identidade, até eu conhecer cada um, ver casos de reincidência e ter vínculo com alguns poucos, mudou profundamente o meu olhar. Em "Olhos que condenam" um agente da polícia ajuda um dos garotos enquanto ele estava preso e sempre o chama de "garoto" no que este responde "eu gosto quando você me chama assim". Na Fundação todo visitante é senhor(a), dentre eles: mães e voluntários, quase não há pais. É quase inimaginável pensar que de repente seu filho pode parar lá sem ter feito nada de errado, mas pode. Leva tempo até que eles confiem na gente para contar o que de fato fizeram. Tem gente que se torna mau porque o mundo é mau, tem gente que o sistema força a sofrer todos os infortúnios. Toda gente é recuperável. Quando um menino sai de lá, muito provavelmente ele vai voltar, não porque ele queira, mas porque não tem nenhuma oportunidade fora (e isso não é discurso de quem romantiza a vida ou "apoia" bandido, se a visão é o sentido mais real, eu vi muitos meninos tentando e voltando). No ano passado eu tive um aluno "x" no curso de Eletrônica e ele não prestava atenção em nada, um dia, enquanto eu dava aula de 'Elementos da Comunicação' ele me tirou do sério e eu pedi que ele cantasse a música que estava ouvindo para eu ver se compartilhávamos os mesmos códigos linguísticos. Ele cantou uma composição dele e a aula foi incrível, eu nunca me esqueci dele. Naquele dia pegamos o mesmo ônibus e ele me contou sua história, disse que estudava eletrônica porque era muito bom em "pegar carro, sabe como é", eu tentei disfarçar meu choque, mas fiquei feliz que ele sabia que era bom e estava estudando para mudar. Duas semanas depois ele saiu da escola e acabou voltando para Fundação. Entendi que o meu trabalho era a base, eu não quero que nenhum aluno meu vá parar lá. E isso é, sim, minha responsabilidade também.


Mesmo quando chega o fim do ano e eu corrijo redação do ENEM, algo tão simples, eu penso que não posso corrigir de qualquer jeito, tenho que reler quantas vezes for necessário, não pode ser automático porque eu estou lidando com o futuro de outra pessoa e isso é muito importante. Então, eu não consigo entender o que policiais, promotores, juízes, advogados e toda essa galera do Direito, mas não só, pensa quando lida com a vida do outro. O pastor quando explora até o limite a pobreza de uma pessoa em nome de um deus, um professor que desiste do aluno, um médico que se nega a salvar uma vida porque falta dinheiro, gente que só vê número e não vê o humano. Sei que não trouxe argumentos para convencer de que precisamos nos importar e cuidar uns dos outros, mas nem sei se se trata de argumentos. Só sei que se algo vale na vida são os relacionamentos e que toda oportunidade de fazer o bem, praticar o amor e a justiça deve ser aproveitada. Como tenho dito insistentemente, chegamos em um ponto que não basta não ser racista, machista, homofóbico, etc. todo marcador de diferença deve ser denunciado e combatido para que a vida faça algum sentido.

1 de julho de 2019

democracia em vertigem


1
Quando eu tinha 22 anos Elena me apresentou a Petra. Petra me falava sobre Elena - sua irmã mais velha, que viajou para Nova York com o sonho de ser atriz de cinema - de um modo muito particular. Elena se suicidou.
2
Ao caminhar pela praia e pegar uma concha, ouço muitas vozes, mas ao me concentrar, consigo distinguir cada uma delas. Estranhamente a voz de Petra se assemelha a voz do meu avô.
3
Durante a minha infância eu ouvi repetidas vezes as seguintes frases: "ela é neta do Lula" e "se você chorar vão pensar que você é fraca porque é menina". O meu avô não gostava de se parecer fisicamente com o Lula, mas quando eu entendi quem era cada um deles, me punha a observar minuciosamente essa semelhança. 
4
Todas as vezes que eu senti vontade de chorar, saí correndo para o banheiro. Lá, eu encontrei muitas mulheres chorando também. Havia quem dissesse "chama a Mari porque ela vai nos representar, vai conseguir falar sem chorar" e eu falava.
5
Petra me presenteou com uma obra. As imagens em movimento estavam dispostas em ordem cronológica, mas caminhavam paralelamente entre o que é público e privado. Ela tem essa mania de mexer com minhas lembranças.
6
Em 2015 meu avô morreu, ele não viu o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A primeira vez que eu fui ao Museu da Resistência tinha 16 anos e em uma cela eu li "Dilma". A letrinha pessoal... sozinha eu chorei. Chorei quando ela disse "eu nunca temi a minha morte, mas temo a morte da democracia".
7
Faz apenas quatro anos que meu avô faleceu, mas aconteceu tanta coisa. Desde os três primeiros segundos, as imagens de Petra me levaram às lágrimas. No dia em que o Lula foi para São Bernardo, antes de ser preso, eu estava com meus amigos. Não consegui assistir ao noticiário. À noite nós fizemos uma fogueira, pegamos o violão e cantamos "Pra não dizer que não falei de flores", mas havia gente soltando fogos. 
8
Conforme vamos vivendo, vamos descobrindo e aprendendo mais sobre a vida, sobre quem somos, sobre as relações. Eu sou mulher. Eu sou pobre. Há gente mais pobre e mais rica do que eu. Eu sou branca. Eu sou bisneta de índio, neta de nordestino. Eu vivo em São Paulo. Eu estudei. Eu choro de tristeza e choro de alegria. Eu não comemoro a prisão de ninguém. Ninguém. Porque quando alguém é preso, eu sinto que falhei.
9
Alguns documentos foram criados para nos ajudar a viver. Leis. Constituição. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estatuto da Criança e do Adolescente. O humano pode ser desumano. Me parece óbvio que um criminoso, apresentadas as devidas provas, merece ser julgado e condenado, seja quem for. Mas a premissa da justiça é a isenção.
10
Todos têm uma história. O avô de Petra foi sócio de construtora. Meu avô dono de um boteco. A construtora fazia parte de um esquema de corrupção no país. Enquanto meu avô e eu jogávamos dominó e conversávamos sobre política, ele soltava pérolas como "você vai saber que algo é errado, se isso não deixar você dormir" ou "quem acha que muito sabe de nada sabe, ouça quem é diferente de você, troque, pondere e ensine".
11
Meu companheiro brinca que eu serei presidente do Brasil. Eu queria ser artista como Petra, mas sou professora. Para alguns, doutrinadora e da balbúrdia. Nos últimos quatro anos posso dizer que aconteceu somente um fato politicamente estimulante "vira voto". Entre a esquerda, a direita e seus problemas, havia quem quisesse conversar e praticar a escuta ativa. Entender o outro. Pena que isso aconteceu depois de tudo. Tudo não é o bastante. 
12
"O que fazer quando a máscara da civilidade cai e temos que encarar nossa própria imagem?" foi o que Petra me perguntou nos últimos três segundos de documentário. Eu voltei em cada imagem e me vi nas manifestações de 2013, 2015, 2016, 2018 sem camisa verde e amarela. Olhei o planalto, lembrei de quem amo e votou em quem rejeito. Não soube responder.
13
Enquanto a democracia levemente se enfraquece, o autoritarismo é como uma nuvem. Chove. As pessoas se sentem inseguras e pedem armas, outras se arrependem. Eu seguro um lápis e escrevo, esperando que se um dia alguém ver meu nome em uma cela de museu, eu esteja viva e essa pessoa livre porque a democracia resistiu.

em construção

um menino de dezenove anos morre. deixa uma mãe e dois irmãos mais novos. restam muitos amigos. cada um, velando o corpo, presta seu testemunho descrevendo como foi conviver com esse menino. esse menino tem meu sobrenome, na prática não sei o que isso significa. o que um sobrenome carrega?
ouvi que durante o ensino médio ele não tinha celular e estava sempre com a mesma blusa vermelha. a questão não é o celular em si - é possível que a qualidade de vida e relacionamentos dele tenham sido muito melhores sem esse objeto - o problema é: onde estava a parentela para dar suporte às necessidades sócio-econômicas pelas quais esse menino passou? um celular. uma blusa não são tão caros assim.
diante da inconformidade da injustiça, os amigos o ajudavam com os trabalhos que dependiam de internet. ao ouvir seus depoimentos e conhecer esse menino, meu parente - depois de morto - a palavra 'família' pulsava insistentemente me mostrando que a definição que tinha era muito equivocada.
enquanto internamente eu era o caos em silêncio, uma criança me disse 'família é onde cabe todas, todas, todas as pessoas, né?'. eu chorei em paz porque mesmo com a ausência da 'família', a Família desse menino era presente.
"era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada..." foi nessa casa que esse menino viveu. ao abraçar sua mãe ela me disse 'por que meu filho morreu agora, quando finalmente ele teria um lar?' "mas era feita com muito esmero, na rua dos bobos número zero".
não é justo um menino de dezenove anos morrer. 'não é justo para quem? para ele ou para quem ficou?' não é justo que em vida a dignidade lhe tenha sido negada. ainda bem que, em alguma medida, a felicidade não depende da justiça.

20 de abril de 2019

30 de março de 2019

cérebro

traiçoeiro
queria escrever querida,
mas escrevi queria
sem querer.
quanto mais não
mais quero
e porque não
só querela

2 de março de 2019

carnaval

Se você digitar no Google "Carnaval" vai aparecer imagens do Brasil, embora essa festa ocorra em outros lugares, isso não é curioso? A maioria das pessoas sabem que o Carnaval é uma festa "pagã" - pagã aos olhos de quem? - que reúne tradições babilônicas, mesopotâmicas e romanas. A doutrinação da igreja faz com que certos cristãos tornem verdade absoluta a sua interpretação das escrituras, favorecendo uma liderança que lucra com a opressão de pessoas. Nesse sentido, o que há de mais bonito no Carnaval é a inversão de papeis.
Quantos pobres, negros, mulheres, LGBT+, entre outros, sofrem com a desigualdade social no Brasil? Uma resposta possível para o sucesso do Carnaval no país, seja a possibilidade de em alguns dias cada um ser o que quiser ser. Certamente alguém vai dizer: "Mas você está idealizando o Carnava, esquece que das orgias, dos acidentes, do dinheiro que é desviado para o tráfico, etc.?" e a resposta vem sem seguida, mas sempre em forma de pergunta "não, não esqueço, mas o que tudo isso interfere na sua vida? Em que a orgia do outro, o acidente do outro, o desvio do outro te afeta, se quem sofre as consequências é o outro?"
Talvez o tráfico, em uma série que desencadeia diversos outros problemas, seja o que o prejudica a maioria das pessoas, mas ninguém obrigada ninguém a usar drogas, logo o maior problema é a estrutura educacional, não a festa. Acredite, tem gente que tem na droga seu lazer ou sua sobrevivência. Para quem mora na rua, passa fome e frio, a droga - lícita e ilícita - ajuda a suportar a realidade e estender os dias de vida (o pior é que eu já ouvi que é melhor essa gente morrer do que sofrer - oi? Onde está sua humanidade? O melhor não seria oferecer oportunidades de saúde, recuperação e reintegração social? Sabia que em um fluxo você pode encontrar gente até com pós-doutorado que é poliglota? Já se perguntou porque ela foi parar lá?). 
Adolescentes e jovens que vivem na periferia, mas não só eles, às vezes usam droga simplesmente pelo "barato" e pelos amigos. Já calculou como o básico do entretenimento custa caro em São Paulo, por exemplo? Se alguém for ao cinema numa quarta-feira, pela manhã (horário que os adolescentes e jovens normalmente estão na escola) vai pagar $10,00, somando as passagens de transporte público ida e volta $4,60, se comer em um lugar barato, cujo a coxinha custa $2,00 e ganha outra e somar com a bebida, ele ou ela gastará $25,00. Mas tem um detalhe, normalmente esse adolescente ou jovem mora com mais uns três irmão no mínimo e a mãe trabalha como empregada doméstica. A família mora em uma residência de aluguel e o pai ninguém sabe onde está.
Quando esse adolescente ou jovem me diz que usa droga, eu não consigo criticar, por mais que eu saiba que na maioria dos casos não é saudável. Quando ele vai ao bloquinho de carnaval e ocupa a cidade, gratuitamente, ouvindo música e dançando com os amigos, eu não consigo criticar. Sim, há outras formas de se divertir, mas não para eles. Esse mundo é cruel, por isso a inversão de papéis me encanta.
Evidentemente, quando homens se vestem como mulheres no Carnaval, eles não são tratados como normalmente as mulheres são tratadas. Ainda não ouvi nenhuma história de homens fantasiados como mulheres dizendo que foram assediados, ou que passaram a mão nas partes íntimas deles, ou que veio um grupo de mulheres e os cercaram para violentá-los, ou que mulheres os doparam e eles acordaram em lugares desconhecidos. Que bom que eu nunca ouvi histórias assim, mas o contrário eu ouço todo dia. A inversão de papeis não é completa e intrínseca, leva tempo para apreender. É aos poucos. Primeiro as pessoas ocupam o território, depois elas aprendem que "não é não", que é bom deixar a rua limpa e que um dia os papeis nem vão mais precisar se inverter porque vamos ter aprendido COMO CONVIVER COM AS DIFERENÇAS.
Ontem os alunos que estudam onde trabalho fizeram um bloquinho de Carnaval. Estava tudo invertido. Uma pessoa disse "está todo mundo saindo do armário hoje", que bom que tem um dia para sair do armário até que ninguém mais tenha que viver lá, seja qual for a questão. Ao retornar para casa com glitter no rosto, eu encontrei uma adolescente com glitter no rosto também, nos olhamos, sorrimos, nos reconhecemos mesmo sem nos conhecer e foi bonito porque estávamos juntas e livres.

25 de fevereiro de 2019

cristãos: parem de matar pessoas

antes de começar, quero dizer que isso é um testemunho.

Quem me conhece sabe que, quando meus pais se divorciaram eu tinha seis anos, meus avós ficaram responsáveis pela minha educação. Minha avó e eu somos bem diferentes, consequentemente eu sempre fui mais próxima do meu avô.
Em 2015, ele faleceu durante uma cirurgia cardíaca. O meu avô foi o ser humano, mais humano que eu já conheci. Evidentemente ele tinha defeitos, se fosse perfeito não teria vivido aqui durante 65 anos - que para mim foi tão pouco.
Sabe aquela pessoa que, mesmo sem ser dia de ação de graças, ao ver uma pessoa desconhecida com fome dá te comer? Aquela pessoa que se abnega até que todos possam estar bem e então passa a pensar em si? Meu avô era essa pessoa.
Na juventude ele foi alfaiate, mas depois de um certo tempo essa profissão se extinguiu e, então, ele tornou-se barista. Eu só tenho memórias do meu avô trabalhando no bar dele. Quando minha começou a frequentar a igreja evangélica, todos queriam que o meu avô fosse à igreja, mas ele só ia quando algum neto se apresentava em cantatas ou no dia dos pais. Um dia eu perguntei a ele por que ele não frequentava a comunidade e ele me respondeu: Eu tenho um bar, essa é minha fonte de renda, eu sei que é digno, mas as pessoas me julgariam porque vender bebida não é certo.
Evidentemente eu não creio que "ir à igreja" faria diferença no caráter do meu avô. Eu costumava ouvir que "igreja é como um hospital, só tem gente com problema ou doente", se esse pensamento estiver correto, realmente meu avô não precisava de igreja. Triste é uma pessoa querer frequentar um espaço, mas não fazê-lo porque sabe dos julgamentos, e mais triste ainda é isso acontecer em um ambiente tristão, cujo discurso não condiz com a prática.
Enquanto eu estive na Irlanda, em uma das aulas, um professor disse "Fuck Jesus" e aquilo me despertou muitas questões. Dentre elas "Por que ele está dizendo isso? E se na sala há cristãos? Etc" Não vou me ater à história do meu professor e do quão incrível é a pessoa dele a ponto de não me ofender com sua frase. Apenas citei esse exemplo para dizer que a reação dele é normal se observarmos o contexto irlandês, a igreja católica e protestante rivaliza há mais de quatro séculos e mata gente. Mata muita gente. A divisão territorial é clara: Irlanda do Norte - protestante;  República da Irlanda - Católica. Já, aqui, no Brasil há divisão territorial, com a diferença é que a linha é imaginária.
Pois bem, na véspera da cirurgia do meu avô, uma tia-avó foi nos visitar e disse a ele "Júlio, você sabe que sua cirurgia tem risco, você precisa aceitar Jesus, do contrário, se você morrer vai para o inferno". Ouvir aquilo me dilacerou. Que deus é esse? E essa mania que cristãos têm de julgar, como quem sabe o destino da alma de cada um. Eu quis dar uma resposta bem atravessada, mas meu avô apenas disse "Obrigada pelo conselho", então ela foi embora. Eu não entendi nada, mas ele me disse que na verdade ela não tinha entendido nada.
Minha questão é que não é só ela quem não entendeu nada. A principal mensagem do evangelho é o amor, mas os cristãos projetam nessa mensagem o pior de si. Quantas meninas na igreja engravidam antes de casar-se e não recebem nenhum amparo? Quantas mulheres apanham de seus maridos, às vezes casaram-se porque "fornicaram", e têm que permanecer sofrendo porque um dia Deus vai mudar? Quantas jovens não podem ir à igreja de calça, vão de saia e são recriminadas pelo "curto", enquanto o homem passa tranquilamente como se não tivesse responsabilidade sobre isso? Quantas pessoas passam fome, mas têm que estar com roupas impecáveis para ser "aceito"? E se for morador em situação de rua, definitivamente não haverá espaço para essa pessoa na igreja. Eu poderia elencar inúmeras perguntas que denunciam a hipocrisia dos cristãos.
Minha sorte na vida é encontrar pessoas como meu avô e conhecer de pertinho quem é Jesus.

24 de fevereiro de 2019

Na Irlanda é "sorry"

Desde criança ouvimos dizer que há "palavrinhas mágicas", como "por favor", "obrigada", "com licença" e "desculpa". Com o passar do tempo as palavras perdem a magia e não nos preocupamos mais com seu significado, o uso cotidiano nos faz perder a noção do poder das palavras ou do poder que as palavras têm de acordo com quem as fala.
Em uma aula de inglês, aprendemos que "desculpa" é "sorry" e "com licença" é "excuse me", na Irlanda: não.
Se alguém esbarrar em você, dirá "sorry"; se você estiver na frente de alguém ele dirá "sorry"; se ele precisar de algo e você puder ajudá-lo, ele dirá "sorry". Como professor de língua, leva tempo até você entender a linguagem em funcionamento, fiquei pensando qual seria a palavra que os irlandeses realmente usam quando querem de desculpar, quando estão arrependidos. Diferente de nós, falantes do português brasileiro que usamos perdão com uma conotação mais forte que "desculpa", eles o usam quando não entendem o que foi dito.
Ao mesmo tempo, os brasileiros têm vivido situações que realmente necessitam de pedido sincero de desculpas, mas se não há arrependimento, não há porque pedir. Na Irlanda me perguntaram por que há tantos brasileiros lá e por que elegeram Bolsonaro, se ele tem um discurso tão violento? Eu não sabia como responder a segunda pergunta, mas tentei responder à primeira. A Irlanda fala inglês. Um dos principais fatores que contribuem para o crescimento econômico da Irlanda é a língua. Isso me encantou. Como toda língua há regras e há quem não fale seguindo as regras, porque a língua é viva. Os brasileiros que vão à Irlanda, evidentemente não são pobres ou tão necessitados quanto os bolivianos que recebemos, são contextos diferentes, ir para Europa custa caro. Mas a Irlanda tem políticas de imigração um pouco mais flexíveis, um custo de vida um pouco menos que os demais países de língua inglesa, um povo que não chega a ser caloroso, porém é receptivo; enfim, a Irlanda é a sétima economia do mundo, as principais empresas estão levando duas sedes para Dublin, tanto pela infra-estrutura, quanto pelos baixos impostos e juros. Arrisquei dizer que esses são alguns motivos pelos quais há tantos brasileiros lá, é preferível dizer o que há de melhor no outro. Temi dizer que há muito tempo falta, por parte dos representantes políticos brasileiros, um verdadeiro pedido de desculpas. Temi dizer que os brasileiros que têm uma renda maior estão saindo do país porque está tudo um caos. Por mais estereotipado, preferi deixar os irlandeses com a imagem da Amazônia, do Rio, da feijoada e do Carnaval, pois são belas imagens.
O mais curioso nessas perguntas que me fizeram é que eles, tão distantes de nós, perceberam a violência no discurso de Bolsonaro. Talvez, para os irlandeses, a palavra "sorry" não seja tão superficial quanto parecia, pode ser que eles usem "sorry" porque não querem que aquilo se repita. Eles percebem a violência nas palavras, enquanto alguns brasileiros as reproduzem muitas vezes sem pensar sobre elas.
"Sorry" por matar negros indiscriminadamente.
"Sorry" por roubar dos pobres e favorecer ricos.
"Sorry" por não oferecer moradia, saneamento básico, educação e saúde para quem precisa.
"Sorry" por matar tantos LGBT+  e dizer que é cristão.
"Sorry" por não cuidar da nossa natureza.
"Sorry" pela corrupção polícia que contribui para que tantos jovens morram de overdose.
"Sorry" por conduzir um país cheio de gente do bem e tão belo, considerando os próprios interesses.
"Sorry" é o que os políticos brasileiros deveriam dizer ao povo. Como isso não acontece, é comum o brasileiro ir e não querer voltar.