5 de julho de 2019

A escola

Dia de avaliação geral do bimestre, a professora Núbia entra na sala para aplicar a prova. Sempre sorridente e muito elegante, ela observa cada um dos alunos enquanto dispõe os materiais sobre a mesa. São 37 exames e Núbia confere cada um deles, para que nenhum aluno seja prejudicado. Durante o bimestre, ela tentou gerir a sala de modo que as melhores competências de cada aluno fossem desenvolvidas em favor da turma como um todo, visando um desempenho de excelência.

Cerca de 12 minutos depois, ainda havia alunos conversando, mas finalmente ela pôde desejar um bom dia e escrever algumas instruções na lousa. Para Núbia alguns alunos são especialmente marcantes, ela direciona o olhar para Bárbara e sabe de seu potencial, mas, de repente, Henrique pergunta "--Avaliação? Hoje tem avaliação? Como assim?", Bárbara responde "--Como assim, como assim? Menino, você não vai crescer, não? Deixa de ser avoado, não quero que a prova atrase".
Núbia pede calma e explica a Henrique "Querido, eu avisei a semana toda, a avaliação é hoje e não haverá nenhuma alteração"; "Nossa, Bárbara, onde está o seu bom humor, nem parece a Bárbara de todo dia, eu tinha esquecido da prova, calma.... Relaxa, professora, está tudo sob controle, eu sou sossegado e preocupado, então vai dar certo", disse Henrique. Já Núbia, pensou "adolescentes, sempre tão contraditórios". 

Henrique era um excelente aluno, não era de estudar a ponto de copiar, ler e reler o texto inúmeras vezes, mas tinha um espírito inquieto, muito questionador, prestava bastante atenção e quando o assunto era história indígena, era ele quem pedia o silêncio da turma. Quando Núbia falava sobre Henrique no Conselho de Classe, dizia que ele era um menino distraído, mas muito articulado, sabia transitar bem entre os grupos e continuamente conversava com os colegas sobre problemas sociais e cultura, ao mesmo tempo contava piadas e fazia todos rirem. Um rapaz amigável.

"Professora, quando vai começar? Estamos perdendo tempo", disse Bárbara, então Núbia respondeu "Temos duas aulas, meu bem, são apenas dez questões e você é competentíssima". Bárbara era uma menina focada. De manhã estava na escola, ao chegar em casa à tarde tinha horários cronometrados. Almoçava ao meio dia, das 13h30 às 14h30 lia as notícias do jornal, em seguida resolvia todos os exercícios extracurriculares. Quando Núbia perguntava "O que é o Reino Monera?", imediatamente Bárbara respondia "É aquele formado por bactérias ou cianobactérias, suas células não têm organelas, portanto são procariontes." Núbia aclamava "Parabéns, Bárbara, Parabéns", e enchia a boca para falar da aluna brilhante, menina dedicada e bem humorada, sabe a hora de estudar e a hora de contar piadas, equilibradíssima.

Finalmente, quando Núbia se prepara para ler a prova para os alunos, explicar e distribuir, eis que se levanta Vitor, o aluno impecável. Sempre de camisa e calça social, arrumado pela mamãe, vocacionado à política, óculos e aparelho dental - que o deixava com uma aparência "nerd" e com uma fala engraçada - Vitor começa "Antes de mais nada, eu quero dizer, professora, que sou contra provas como avaliação, é urgente pensarmos novos tipos de avaliação, eu me sinto coagido, não é uma prova que mede nosso conhecimento, estamos todos constrangidos, pois todos somos avaliados como iguais quando isso não é verdade. Esse sistema é cruel e opressor". Sem paciência, Núbia responde "Você está certo, sugira algo melhor e vamos adiante". Silêncio. "Nenhuma sugestão, gente, alguém? Do contrário, vamos começar", disse Núbia.

Os alunos se ajeitam, uma folha para rascunho. Um lápis, uma borracha e caneta preta em cima da mesa. Henrique grita "Poxa, estou sem caneta, alguém empresta?", Bárbara "Será possível? Toma". Então César, muito educado diz "Professora, perdão pela minha indelicadeza em interromper, mas este processo está muito cunctatório, não conseguimos ser desasnados. Vitor tentou, mas não a empederniu e neste exato momento eu acabo de perceber que alguém me gualdripou, meu estojo desapareceu, estou impossibilitado de realizar a prova." Diante da difícil situação, Núbia diz "O que o César disse é muito grave, turma, alguém viu o estojo dele? Que desagradável! Eu espero que esse estojo apareça, porque do contrário..."

"Olha pra cá, olha pra cá... eu juro que não fui eu, mas aquele não é o estojo do César?", disse Henrique apontando em direção à mesa de Marina. Núbia "Gente, a Marina, será? Não acredito, mas ela só dorme". César "é claro que não foi ela quem fez isso comigo, professora, colocaram na mesa dela para me graçolar, mas isso é inócuo, não me abala. Podemos começar". "Finalmente, podemos mesmo?", disse Núbia. "Não, não, não a prova é dissertativa ou de múltipla-escolha? Objetiva ou interpretativa? Sou melhor com questões mais eruditas, professora", disse César.

Núbia retoma as orientações, impaciente. "Coloquem, nome, número, série e a data de hoje". "Professora, coloca o nome onde?", disse Marina despertando."Chega, eu desisto, apenas leiam o que está na lousa e comecem a prova", disse Núbia.

Acaba a energia. Henrique "sabia que a prova não era hoje".


3 de julho de 2019

uma genuína tristeza em viver (ou sobre a responsabilidade que temos com a vida do outro)

Em 31 de maio de 2019, sob direção de Ava DuVernay - premiada diretora afro-americana com filmes como "Selma" e "Middle of Nowhere" - estreou na plataforma streaming Netflix "When they see us" ou "Olhos que condenam", de acordo com a tradução brasileira. A série, com quatro episódios de aproximadamente 1h30min, conta-nos a história dos Cinco do Central Park: Korey Wise, Antron McCray, Yusef Salaam, Raymond Santana e Kevin Richardson. Em 19 de abril de 1989, Trisha Meili foi brutalmente estuprada enquanto corria no parque. Cinco adolescentes, quatro negros e um latino, que viviam no Harlem, em Nova York, foram acusados de cometer o crime, no entanto a polícia usa de meios ilegais para obter suas confissões - por exemplo, coagi-los a depor durante 42h sem a presença de um responsável maior de idade ou advogado, sem alimentá-los e agindo com violência.
A promotora do caso, Linda Fairstein, mulher branca, hoje com 72 anos e premiadíssima com seus romances policiais, pós a condenação dos garotos, - para fazer carreira - precisava resolver o caso com agilidade, pois a mídia não parava de veicular notícias a respeito. O sangue e o sêmen encontrados nas roupas de Trisha Meili não correspondia a nenhum dos acusados, e, ainda assim, todos foram condenados devido aos depoimentos onde foram induzidos a confessar o crime. Entretanto, as cinco histórias não coincidiam e não havia testemunhas. Um deles, com 16 anos, foi preso em uma penitenciária de adultos e cotidianamente apanhava dos demais presidiários, os outros ficaram em reformatórios. Durante os 12 anos em que ficaram em privação de liberdade, a promotoria propôs redução de pena para que eles confessassem, mas nenhum o fez. Finalmente, após cumprirem a pena, o verdadeiro estuprador, um homem branco, confessou o crime em detalhes, as provas forenses foram verificadas e confirmadas.
Quando se é inocente "toda culpa é energia estagnada, não muda o passado e não molda o futuro", disse uma das mães ao filho. O que fazer quando se sofre uma injustiça simplesmente por ser quem se é, negro? (Lembro de Rafael Braga e tantos outros). Depois de solucionado o crime, o Estado inocentou os rapazes, mas o prefeito Michael Bloomberg se recusou a pagar indenização. Dentre todas as figuras possíveis que critica os meninos, destaca-se a figura de Donald Trump à época apenas um magnata e hoje o homem mais poderoso do mundo (sintomático, não?). Foi em 2014, com o governo de Barack Obama, que cada um dos meninos, agora homens, recebeu cerca de 41 milhões de dólares para refazer suas vidas. Mas, afinal, não há dinheiro que possa restituir o que eles não viveram. Nos últimos dias, com a repercussão da série, Linda Fairstein e os demais policias envolvidos no caso dizem estar sofrendo com o julgamento do público. Em alguma medida eles estão sendo tratados com a mesma crueldade midiática que trataram os meninos, com a diferença de que são adultos e têm mecanismos para lidar com toda a violência que recebem.
Coincidentemente ou não, em vias de assistir tudo ao mesmo tempo, o documentário "Sem pena" (disponível: https://www.youtube.com/watch?v=NcuCPkp8SHY) não trata especificamente de crimes de cunho racial, mas de pessoas que também são presas injustamente. O Brasil é o 3º país com maior população carcerária do mundo e muitas vezes, para cumprir estatísticas, o judiciário, desobedece os devidos procedimentos, sai a condenar voluntariamente pessoas inocentes. Segundo Ferrajoli (2006), o processo penal não se trata de um instrumento da comunidade política para auxiliá-la na perseguição de “criminosos”, mas um trunfo que pessoas acusadas de praticar determinadas condutas criminalizadas possuem para que sejam submetidas, enquanto indivíduos, a um procedimento racional, previsível e protetor de seus direitos enquanto pessoa humana. Esta verdadeira estruturação de princípios indispensáveis começa com o princípio do estado de inocência, que afasta o ranço social estigmatizante que eleva à condição de um condenado em sentença transitada, em julgado um sujeito que está apenas sendo acusado. Nesse sentido, são inúmeros os casos nos quais pessoas que supostamente cometeram o mesmo crime, cumprirem penas diferentes ou conviverem com outras que cometeram crimes muito mais prejudiciais à sociedade em juízo de valor; isso, ao invés de solucionar, reproduz a máquina de delitos.
No documentário, chama atenção também, o fato das melhores universidades do país no que tange ao Direito, ofertar mais disciplinas voltadas ao direito do consumidor do que ao direito humano, pois isso sinaliza a ideologia por trás do sistema: o apagamento de minorias e da dignidade da vida. E pior: com o discurso de que a promove. Todo este cenário que é cinematográfico, mas dialoga e muito com a realidade gerou em mim uma genuína tristeza em viver. Como se no fim nada valesse a pena. Por outro lado, como nos falta o senso de responsabilidade diante do outro. Que comecem os meus clichês, talvez eu esteja hiperdimensionando tudo porque eu sinto demais, e eu preciso compartimentar as crises para não enlouquecer.
Nos anos de 2012, 2013, 2014 eu fui voluntária no Instituto Papel de Menino e todo primeiro domingo do mês eu passava a tarde com os meninos da Fundação Casa de Franco da Rocha. Conheci essa ONG através da Silvana, uma das mulheres mais admiráveis que tenho a honra de conviver. Todo aquele cenário de apagamento de identidade, até eu conhecer cada um, ver casos de reincidência e ter vínculo com alguns poucos, mudou profundamente o meu olhar. Em "Olhos que condenam" um agente da polícia ajuda um dos garotos enquanto ele estava preso e sempre o chama de "garoto" no que este responde "eu gosto quando você me chama assim". Na Fundação todo visitante é senhor(a), dentre eles: mães e voluntários, quase não há pais. É quase inimaginável pensar que de repente seu filho pode parar lá sem ter feito nada de errado, mas pode. Leva tempo até que eles confiem na gente para contar o que de fato fizeram. Tem gente que se torna mau porque o mundo é mau, tem gente que o sistema força a sofrer todos os infortúnios. Toda gente é recuperável. Quando um menino sai de lá, muito provavelmente ele vai voltar, não porque ele queira, mas porque não tem nenhuma oportunidade fora (e isso não é discurso de quem romantiza a vida ou "apoia" bandido, se a visão é o sentido mais real, eu vi muitos meninos tentando e voltando). No ano passado eu tive um aluno "x" no curso de Eletrônica e ele não prestava atenção em nada, um dia, enquanto eu dava aula de 'Elementos da Comunicação' ele me tirou do sério e eu pedi que ele cantasse a música que estava ouvindo para eu ver se compartilhávamos os mesmos códigos linguísticos. Ele cantou uma composição dele e a aula foi incrível, eu nunca me esqueci dele. Naquele dia pegamos o mesmo ônibus e ele me contou sua história, disse que estudava eletrônica porque era muito bom em "pegar carro, sabe como é", eu tentei disfarçar meu choque, mas fiquei feliz que ele sabia que era bom e estava estudando para mudar. Duas semanas depois ele saiu da escola e acabou voltando para Fundação. Entendi que o meu trabalho era a base, eu não quero que nenhum aluno meu vá parar lá. E isso é, sim, minha responsabilidade também.


Mesmo quando chega o fim do ano e eu corrijo redação do ENEM, algo tão simples, eu penso que não posso corrigir de qualquer jeito, tenho que reler quantas vezes for necessário, não pode ser automático porque eu estou lidando com o futuro de outra pessoa e isso é muito importante. Então, eu não consigo entender o que policiais, promotores, juízes, advogados e toda essa galera do Direito, mas não só, pensa quando lida com a vida do outro. O pastor quando explora até o limite a pobreza de uma pessoa em nome de um deus, um professor que desiste do aluno, um médico que se nega a salvar uma vida porque falta dinheiro, gente que só vê número e não vê o humano. Sei que não trouxe argumentos para convencer de que precisamos nos importar e cuidar uns dos outros, mas nem sei se se trata de argumentos. Só sei que se algo vale na vida são os relacionamentos e que toda oportunidade de fazer o bem, praticar o amor e a justiça deve ser aproveitada. Como tenho dito insistentemente, chegamos em um ponto que não basta não ser racista, machista, homofóbico, etc. todo marcador de diferença deve ser denunciado e combatido para que a vida faça algum sentido.

1 de julho de 2019

democracia em vertigem


1
Quando eu tinha 22 anos Elena me apresentou a Petra. Petra me falava sobre Elena - sua irmã mais velha, que viajou para Nova York com o sonho de ser atriz de cinema - de um modo muito particular. Elena se suicidou.
2
Ao caminhar pela praia e pegar uma concha, ouço muitas vozes, mas ao me concentrar, consigo distinguir cada uma delas. Estranhamente a voz de Petra se assemelha a voz do meu avô.
3
Durante a minha infância eu ouvi repetidas vezes as seguintes frases: "ela é neta do Lula" e "se você chorar vão pensar que você é fraca porque é menina". O meu avô não gostava de se parecer fisicamente com o Lula, mas quando eu entendi quem era cada um deles, me punha a observar minuciosamente essa semelhança. 
4
Todas as vezes que eu senti vontade de chorar, saí correndo para o banheiro. Lá, eu encontrei muitas mulheres chorando também. Havia quem dissesse "chama a Mari porque ela vai nos representar, vai conseguir falar sem chorar" e eu falava.
5
Petra me presenteou com uma obra. As imagens em movimento estavam dispostas em ordem cronológica, mas caminhavam paralelamente entre o que é público e privado. Ela tem essa mania de mexer com minhas lembranças.
6
Em 2015 meu avô morreu, ele não viu o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A primeira vez que eu fui ao Museu da Resistência tinha 16 anos e em uma cela eu li "Dilma". A letrinha pessoal... sozinha eu chorei. Chorei quando ela disse "eu nunca temi a minha morte, mas temo a morte da democracia".
7
Faz apenas quatro anos que meu avô faleceu, mas aconteceu tanta coisa. Desde os três primeiros segundos, as imagens de Petra me levaram às lágrimas. No dia em que o Lula foi para São Bernardo, antes de ser preso, eu estava com meus amigos. Não consegui assistir ao noticiário. À noite nós fizemos uma fogueira, pegamos o violão e cantamos "Pra não dizer que não falei de flores", mas havia gente soltando fogos. 
8
Conforme vamos vivendo, vamos descobrindo e aprendendo mais sobre a vida, sobre quem somos, sobre as relações. Eu sou mulher. Eu sou pobre. Há gente mais pobre e mais rica do que eu. Eu sou branca. Eu sou bisneta de índio, neta de nordestino. Eu vivo em São Paulo. Eu estudei. Eu choro de tristeza e choro de alegria. Eu não comemoro a prisão de ninguém. Ninguém. Porque quando alguém é preso, eu sinto que falhei.
9
Alguns documentos foram criados para nos ajudar a viver. Leis. Constituição. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estatuto da Criança e do Adolescente. O humano pode ser desumano. Me parece óbvio que um criminoso, apresentadas as devidas provas, merece ser julgado e condenado, seja quem for. Mas a premissa da justiça é a isenção.
10
Todos têm uma história. O avô de Petra foi sócio de construtora. Meu avô dono de um boteco. A construtora fazia parte de um esquema de corrupção no país. Enquanto meu avô e eu jogávamos dominó e conversávamos sobre política, ele soltava pérolas como "você vai saber que algo é errado, se isso não deixar você dormir" ou "quem acha que muito sabe de nada sabe, ouça quem é diferente de você, troque, pondere e ensine".
11
Meu companheiro brinca que eu serei presidente do Brasil. Eu queria ser artista como Petra, mas sou professora. Para alguns, doutrinadora e da balbúrdia. Nos últimos quatro anos posso dizer que aconteceu somente um fato politicamente estimulante "vira voto". Entre a esquerda, a direita e seus problemas, havia quem quisesse conversar e praticar a escuta ativa. Entender o outro. Pena que isso aconteceu depois de tudo. Tudo não é o bastante. 
12
"O que fazer quando a máscara da civilidade cai e temos que encarar nossa própria imagem?" foi o que Petra me perguntou nos últimos três segundos de documentário. Eu voltei em cada imagem e me vi nas manifestações de 2013, 2015, 2016, 2018 sem camisa verde e amarela. Olhei o planalto, lembrei de quem amo e votou em quem rejeito. Não soube responder.
13
Enquanto a democracia levemente se enfraquece, o autoritarismo é como uma nuvem. Chove. As pessoas se sentem inseguras e pedem armas, outras se arrependem. Eu seguro um lápis e escrevo, esperando que se um dia alguém ver meu nome em uma cela de museu, eu esteja viva e essa pessoa livre porque a democracia resistiu.

em construção

um menino de dezenove anos morre. deixa uma mãe e dois irmãos mais novos. restam muitos amigos. cada um, velando o corpo, presta seu testemunho descrevendo como foi conviver com esse menino. esse menino tem meu sobrenome, na prática não sei o que isso significa. o que um sobrenome carrega?
ouvi que durante o ensino médio ele não tinha celular e estava sempre com a mesma blusa vermelha. a questão não é o celular em si - é possível que a qualidade de vida e relacionamentos dele tenham sido muito melhores sem esse objeto - o problema é: onde estava a parentela para dar suporte às necessidades sócio-econômicas pelas quais esse menino passou? um celular. uma blusa não são tão caros assim.
diante da inconformidade da injustiça, os amigos o ajudavam com os trabalhos que dependiam de internet. ao ouvir seus depoimentos e conhecer esse menino, meu parente - depois de morto - a palavra 'família' pulsava insistentemente me mostrando que a definição que tinha era muito equivocada.
enquanto internamente eu era o caos em silêncio, uma criança me disse 'família é onde cabe todas, todas, todas as pessoas, né?'. eu chorei em paz porque mesmo com a ausência da 'família', a Família desse menino era presente.
"era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada..." foi nessa casa que esse menino viveu. ao abraçar sua mãe ela me disse 'por que meu filho morreu agora, quando finalmente ele teria um lar?' "mas era feita com muito esmero, na rua dos bobos número zero".
não é justo um menino de dezenove anos morrer. 'não é justo para quem? para ele ou para quem ficou?' não é justo que em vida a dignidade lhe tenha sido negada. ainda bem que, em alguma medida, a felicidade não depende da justiça.