28 de setembro de 2019

criação literária e amigos

todos os meus amigos são meus personagens literários. alguns, poucos, sabem quais nomes e características lhes atribuí em histórias semi-inventadas.
durante muito tempo eu me cobrei a criação de personagens únicos, que fossem totalmente criados por mim, mas não fui bem sucedida. finalmente me conformei com tal impossibilidade e decidi, como, talvez, um bom autor que orquestra a vida das pessoas, até seus pensamentos, ressignificar a história dos meus amigos.
desde já, oriento, leia este texto sem se procurar, pode ser que você pense que você é outra pessoa. pode ser que em uma situação na qual você optou pela ação "x" eu tenha achado uma verdadeira burrice e então você vai descobrir que se tivesse me consultado, sua vida estaria muito melhor. ou pode ser que na descrição minuciosa de minhas expressões faciais, em momentos que vivemos juntos, nada precisa ser dito entre nós, mas o mundo precisa saber. minha grande pena é ter visto gente na rua uma vez, escrever sobre ela e saber que provavelmente nunca mais a verei novamente.

sp-g
viver em uma cidade como sp é ter a certeza de que você nunca vai encontrar uma pessoa a não ser que você tenha algo em comum com ela. e ainda que você tenha muito em comum, pode ser que você nunca a encontre. tudo parece tão perto e ao mesmo tempo tão distante. eu gosto de viver em sp, você também, eu não gosto do trânsito e você não gosta da distância. será que em nova york seria diferente? eu acho que nunca moraria em nova york, a não ser que fosse estudar. acho que em nova york eu não te encontraria, porque em sp eu te encontrei sem te encontrar. eu tenho essa mania de tornar tudo profundo e nem todo mundo quer mais amigos na vida, às vezes os que temos já são suficientes. eu não sei nada sobre você, mas você é meu amigo e tudo bem se eu não for sua amiga. obrigada por ser um bom ouvido, ouvir minhas críticas e histórias de voluntariado. acho que o que eu mais gosto em você é que você parece não se preocupar com nada "sossegado", é exatamente oposto a mim nesse sentido. eu não bebo porque considero que tudo que afeta minha razão me faz mal, mas me pergunto como deve ser viver uma vida leve, sair, beber, rir e não pensar em nada... um dia você disse que era "preocupado", talvez aquilo que fazia com que eu me identificasse com você fosse isso, mas na verdade não. eu não sei o que temos em comum, além dos anos '90 e toy story.

sp-d
você é um presente-presente, me encanta quão doce você é a cada encontro. impressionante como todo e-mail trocado, e as poucas vezes que nos vemos (essa cidade engole nosso tempo), é inteiro. toda conversa contigo é muito intensa e fico feliz por você não se cansar de mim por isso. eu bem que tento ser divertida, mas quando mal percebo estou falando de algo sério e você parece gostar de mim com esse jeitinho. você tem um quê de poeta, é artista. toda vez que penso em você vejo um pássaro entre a entrada e saída da gaiola: que não haja grades que te prendam. eu não sei se temos muito em comum, mas o que temos em comum é joia rara, pedra preciosa que sustenta uma amizade por anos, ainda que estejamos no primeiro. você sabe que meu maior medo é ter alzheimer. mesmo se eu nunca mais pudesse te ver, eu jamais me esqueceria de você, jamais esqueceria de todas as cores dos seus cabelos e óculos.

Nua com galocha

Caro leitor, antes que você inicie esta leitura, creio que se faz necessário o aviso: este, não é um conto erótico!


Quero lhes falar sobre duas mulheres excêntricas e um rapaz: Marina, Patrícia e Gustavo. Marina estava prestes a se casar e sua maior preocupação não estava relacionada à lua de mel; ela, com seus fetiches, estava bem animada sexualmente. Seu maior temor também não estava relacionado aos bens, como nunca teve muito dinheiro, poderia casar em comunhão parcial de bens, aparentemente, tudo que viesse com o casamento era lucro. Quando perguntavam à moça se ela mudaria de nome, ela respondia que estava disposta até a isso, deixar de ser Marina Tenório Sobral, para ser Marina Tenório Ormo - o sobrenome mais bizonho que ela já tinha ouvido em toda a vida. Tudo que normalmente aflige as mulheres, nem passava perto da angústia de Marina, ela era muito confiante "se um dia ele gritar comigo e vir para cima: dou-lhe um pé na bunda e denuncio à polícia", "aqui o diálogo é franco, se um dia ele me trair: eu o capo enquanto dorme". O que deixava Marina mais desesperada ao pensar no matrimônio era não entender como legalmente ela poderia introduzir à certidão de casamente duas cláusulas. A primeira: jamais lavar banheiro enquanto ambos permanecessem juntos, a segunda: jamais enxugar a louça. Cada uma dessas atividades lhe causava um verdadeiro pavor, lavar o banheiro era importante, mas era tão nojento, que ela passava mal, sentia náuseas e ânsia de vômito só de cogitar a possibilidade de meter a mão na privada.Por outro lado, enxugar a louça era uma tarefa completamente inútil.
Marina trabalhava com Patrícia e Gustavo trabalhava para Patrícia. Enquanto Marina compartilhava  sua inquietação com Patrícia no horário do almoço, Henrique ouviu a história e disse para a moça não se preocupar, ele limpava a casa toda e dava tudo certo, o companheiro de Marina faria o mesmo. A mulherada que compartilhava a mesa ficou enlouquecida, cada uma dizia uma coisa "jura, você limpa a casa? Oh, onde eu errei na educação do meu filho?", "Ai, que demais, nunca vi um homem que limpasse a casa", "Você está de parabéns, viu, você limpa porque não tem uma auxiliar doméstica?"
"É exatamente sobre isso que estou falando", disse Marina, "é normal um homem limpar a casa, gente, ele também não suja? Esses comentários de vocês só reforçam meu desespero, a maioria das pessoas acha que homem não deve limpar a casa, muito menos lavar banheiro ou enxugar a louça". Henrique acha normal e Marina se apegava ao fato de que seu companheiro, por ter a mesma idade de Henrique, teria a mesma atitude.
Finalmente Patrícia falou "amiga, relaxa, lavar o banheiro é tão divertido, você passa um hidratante no cabelo, coloca uma touca, tira toda a roupa e começa a lavar. Enquanto você toma banho e esfrega o banheiro fica limpinho, só não pode esquecer: tem que usar luvas e galochas porque a água sanitária deixa nossos pés e mãos ressecados." Em seguida mais três mulheres responderam eufóricas pela identificação "Nós também lavamos o banheiro nuas com galocha!!!", já Henrique às gargalhadas dizia "Quando a louça é enxugada, fica com cheiro de comida, se tem escorredor, para que enxugar? Marina, se seu futuro marido descumprir as regras do banheiro e da louça, tem uma mulher que auxilia minha família domesticamente, posso indica-la, é a Pilar". Todos riam ao imaginar as amigas nuas com galochas, vassoura na mão, sabão em pó e muita animação para limpar o local mais podre da casa.
Cada vez mais Marina ouvia o que os colegas diziam e sabia que a qualquer momento teria uma crise de ansiedade, devido ao acúmulo de pequenos surtos que frase por frase causou em si. Por que diabos homens são elogiados por limpar a casa? Por que as mães têm dificuldade em educar os filhos para também realizar atividades domésticas? Por que a profissão de auxiliar de casa, é mais comum entre mulheres? Então Patrícia respondeu: "Amiga, a sensação de liberdade ao lavar o banheiro nua com galochas é indescritível, coloca o som bem alto, pega um espumante e joga água de lá pra cá, você sabe que eu comecei a namorar o Gustavo assim..." Todos com uma expressão facial surpresa. "Gente, o Gustavo é o meu auxiliar doméstico, eu sou super feminista e vocês sabem (hahaha). Um dia eu desmarquei uma reunião e aproveitei para lavar o banheiro. Gustavo chegou para limpar a casa, quando de repente abriu a porta e me viu linda, plena e maravilhosa: nua com galocha. Ficou envergonhado, saiu correndo. Depois foi deixando recadinhos no banheiro, um jovenzinho que transita entre a ingenuidade e a descoberta dos prazeres da vida. Que inicie comigo, meu bem. Agora eu tenho um namorico e alguém que limpa a casa de graça para mim, quer algo melhor?".
A tensão passou, todos riram descontroladamente. Marina ficou leve e decidida, agora ela casa.