28 de setembro de 2015

Exílio

I
desde sempre eu ouço que
no oriente o povo viaja
e no ocidente também.
eu tive uma professora que
estuda literatura de viagem,
a primeira vez que escrevi sobre isso
falei do Odisseu. essa viagem
todos conhecem e as da minha terra
também.
nesta época eu aprendi que ex.
significa fora, e ilio é ilha
uns têm vocação, outros obrigação
de estar fora da ilha.
eu nunca tive coragem de tirar meus pés
da minha ilha, mas quando o fiz me
desencontrei
isso porque tirei apenas um pé
o outro ficou
estou prestes a tirar os dois pés
então posso enlouquecer

II
as pessoas que estão fora da ilha
podem sair porque alguém mandou,
às vezes esse alguém nem é da ilha
mas manda.
às vezes sair da ilha é a melhor opção
não foi uma nem duas vezes que
os judeus ouviram uma voz que dizia
vocês têm uma ilha prometida, vão
e eles foram. isso era bom.
esse povo já viveu na ilha dos
egípcios, babilônios, sírios
eles brigam até hoje para ter uma ilha
e chamar de deles.
na verdade o mundo tem muitas ilhas
e em todas elas tem judeus
em todas elas tem orientais
ouvi dizer que um bigodudo
queria que a ilha dos judeus fosse
em outro mundo e por isso
quase todos eles morreram sem ilha.


III.
tem gente que diz que mulheres não têm ilhas
certo dia eu ouvi dizer que a ilha aonde
habitam meninos de 16 a 18 anos
tem muitos, muitos meninos
mas a ilha aonde habitam meninas
da mesma idade tem poucas, poucas meninas.
eu fiquei feliz, mas soube que essas meninas
ocupam uma ilha invisível, e nela, o corpo
custa dinheiro. foi aí que descobri que
ainda habito a ilha da inocência.
ontem uma amiga relatou que tem muitos sírios
querendo entrar na Alemanha
- a ilha do bigodudo - mas lá não "cabem" todos,
então as meninas voltam à ilha invisível do dinheiro
pelo corpo e pagam para que os meninos entrem,
enquanto elas ficam na ilha aonde tem muito, muito
tiro, bomba, violência, fome MORTE.
dentro de uma ilha cabem muitas ilhas
e alguém coloca as meninas em ilhas imaginárias
como preconceito e desigualdade e "tudo bem!"

IV.
há quatro semanas tenho ouvido adolescentes
falar abertamente sobre ilhas
eles criticam as ilhas imaginárias, mas apoiam
a restrição das ilhas reais
se mais gente entrar na nossa ilha não vai ter
emprego, moradia, saneamento, alimento
mas eles estão confusos, pois seu mestre é um
refugiado. real e imaginário
ele foge da ilha da injustiça, da corrupção
ele habita a ilha do altruísmo, da bondade
difícil. esses adolescentes falam sobre
homossexualismo, feminismo, racismo
aqueles que habitam essas ilhas sofrem
porque quem não as habita acha que é melhor.
muitas vezes eu queria não ter ilha
mas a missão de governar as ilhas está aí,
tem gente que governa muito mal as ilhas.
em outro tempo tínhamos duas opções
obedecer aos maus governantes ou morrer
então quem podia fugia de sua ilha.

V.
as canções e os poemas que eu mais gosto
são de quem está fora da ilha.
estar fora da própria ilha é propício
para escrever. quem está fora reconhece
no outro algo que é impossível perceber
dentro da ilha em que habita. quem te vê
cria uma imagem da sua ilha e que imagem é esta?
que imagem você tem da ilha que não habita?
- depende, se for uma ilha vizinha nem pensar,
mas se for lá em cima do mapa, eu quero ir
eu acho você um bobo.
a ilha não é uma criação é uma construção
o que mais importa na ilha são as pessoas
as pessoas tornam a ilha melhor, mas quem
inventou esse conceito de melhor?
pensando bem as pessoas também tornam
a ilha pior. por que os animais vivem bem?
eles não pensam em melhor e pior
às vezes eu me sinto anormal fora da ilha social
mas isso inventaram porque não sou fantoche real.



7 de setembro de 2015

ausência

sentimos que vamos vê-lo
já é dia e minha tia vai trabalhar
ela pensa ouvir a porta abrir
e ver você dando bom dia
eu cheguei um pouco antes dela sair
e penso ver você deitado no sofá
a chave fica fora da maçaneta
e quando abro a porta não o vejo
a insônia tomou conta do quarto ao lado
remédios que já não fazem dormir
um choro de cortar o coração
na sala há um novo retrato
você aos vinte e aos sessenta e poucos
mais suas filhas e netos, mas você não viu
eu cheguei e quero cuscuz
ninguém tem ânimo para fazê-lo
todos estamos reunidos para o café,
mas falta alguém
olhamos o retrato
é a primeira refeição do dia
todos estamos em silêncio
o fim de semana está chegando,
mas minha mãe não vai ao bar
porque você não está lá, mas está...
é estranho
a noite vai chegar e os passinhos lentos
com o barulhinho da chave são inaudíveis
apenas a noite chega e ninguém chega com ela
ela veio para ficar
e eu sinto uma ausência no olhar de todos

1 de setembro de 2015

Diário dos últimos dias

Esta foto dei para o meu avô, no dia dos pais de 2007, num porta-retrato que permanece até hoje na estante da casa dos meus avós.


nota introdutória
O título deste texto é "Diário dos últimos dias", estes últimos dias referem-se aos últimos dias de vida do meu avô e aos meus últimos dias com ele, também tem um pouco de memória. Talvez este texto tenha algo de literário ou autobiográfico, já que autobiografia é - em certa medida - uma invenção do eu, pois eu escolho o que contar.

Apresentação
Meu nome é Mariane Tavares, 24 anos, casada, sem filhos. Esposa do Cléber. Filha de Elaine e Antonio. Sobrinha da Elisangela e do Carlos. Irmã da Andressa e do Victor. Prima do Lucas e do Isaac. E, principalmente, neta do Júlio e da Marinalva. Dizem que tenho o jeito do meu avô e sou a cara da minha avó. Esta é minha família materna. Minha mãe recebeu o sobrenome Tavares do meu avô. Todas as vezes que assino um texto escrevo Mariane Tavares, mesmo tendo outros dois sobrenomes que me acompanham (Sousa, pai, Oliveira, esposo, respectivamente). Entre essas pessoas apresentadas, fui a primeira a ser graduada. Estudei letras. Escrevo poemas, me identifico com a literatura, e a maioria do tempo falo de todos eles sem que eles saibam.


outubro de 2014
Hoje é sexta-feira, meu avô tem consulta marcada com o cardiologista. Desta vez eu não tenho como acompanhá-lo, a consulta foi marcada para às 18h00 e às 19h00 eu tenho que encontrar um grupo de adolescentes porque vou ser monitora em um acampamento. O acampamento tem uma programação bem dinâmica e eu só consigo ver o celular no final do dia. Olhei o celular na sexta, no sábado e no domingo. Nenhuma mensagem. Nenhum telefonema. Tentei ligar em casa duas vezes, só chamava. Meus avós deviam estar trabalhando.
Quando eu cheguei em casa minha tia, que acompanhou meu avô na consulta, me disse que no hospital meu avô teve um mal estar, uma forte dor no coração e o cardiologista pediu diversos exames. Meu avô foi atendido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e no Cruz Azul, hospital que ele faz tratamento, os exames pedidos só podem ser feitos por um convênio. A minha tia tem carro - nesse sentido foi bom eu não poder acompanhá-lo, pois sempre vamos de ônibus - e o levou às pressas para o Hospital Santa Marcelina. Lá, eles atenderam meu avô, fizeram todos os exames necessários e meu avô ficou internado no fim da sexta, o sábado e liberado no domingo de manhã.
Depois de saber toda essa história perguntei porque ninguém me ligou e minha tia respondeu que estava tudo sob controle, que se tivessem me ligado eu iria querer voltar às pressas para casa e ninguém queria me preocupar. Neste dia meu avô teve um início de infarto.

2011
Neste ano descobrimos que meu avô está com hiperplasia, que é um aumento no tamanho da próstata, não é câncer. O meu avô é atendido pela dra. Larissa, eu não esqueço porque sempre que o remédio manipulado que ela receitou acaba, ele me pede para ligar na farmácia e dizer que foi ela quem pediu. Outra coisa que o meu avô só pede para mim é que eu corte a pontinha da cutícula da sua unha. Além disso, ele também pede tesoura - porque eu sempre tenho materiais de papelaria - para cortar o comprimido de AS.

2013
Já faz quatro anos que a dra. Larissa receitou um remédio manipulado para o meu avô. Ela acreditava que com o uso contínuo do remédio a próstata voltaria ao tamanho normal, mas não. O remédio apenas estabilizou. O tamanho não reduziu, mas também não aumentou.
Fomos ao AMA (Assistência Médica Ambulatorial) do Burgo Paulista e ela nos encaminhou para o Hospital Cruz Azul, disse que lá poderiam nos atender melhor pois meu avô terá que fazer uma cirurgia de prostatectomia.
Hoje eu senti uma leve preocupação no olhar do meu avô. Voltamos em silêncio.

1999
Hoje eu levei meu primeiro e único tapa (fui saber disso muito tempo depois). Nós estamos todos reunidos na casa da minha tia para um churrasco. Minha mãe vai apresentar o namorado dela, o Gilson. Minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha seis anos, ou seja, em 1996. Minha idade acompanha os números do ano. Eu não quero conhecê-lo. Minha família está toda alegre. Querem que minha mãe seja feliz. Eu também quero. Mas ela fica pouco tempo comigo. Trabalha. E agora namora esse cara. Eu já pensei em fugir da casa dos meus avós. Mas minha tia achou meu bilhete antes que desse tempo de fugir. Minha tia é minha melhor amiga fraterna. Minha tia me faz rir - com ela eu dei minha primeira gargalhada. Minha tia me ensinou a ler, a jogar vôlei, a andar de bicicleta, a dançar e é ela quem me leva para igreja.
Voltando ao tapa... quando o namorado da minha mãe chegou eu comecei a brincar. Peguei a motoca do Lucas e comecei a jogar nos pés do Gilson. Ele deu uma risadinha e tudo bem. Eu joguei a motoca nos pés dele, uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes. Meu avô me chamou e disse que se eu jogasse a motoca de novo ele iria conversar comigo. Então eu fui lá e joguei de novo. O meu avô pegou na minha mão e me levou para o quarto. Eu não entendi nada, "o que será que ele quer conversar comigo?", pensei. Ele me disse "eu falei que não era para você jogar a motoca, não falei?" e eu respondi "não, vô, o senhor disse que se eu jogasse o senhor iria conversar comigo" e ele disse "o quê? Você está me respondendo?" eu não entendi nada. Meu avô me pediu para pôr as mãos para frente, como quem brinca de adoleta, e eu coloquei achando que ia ganhar alguma coisa: e ganhei! Meu avô me deu um tapa em cada mão e eu nunca esqueci. O chinelo era de coro. Assim que terminou meu avô disse "agora vai lá e derruba a motoca de novo", nesse dia eu aprendi o que era ironia. E fiquei muito brava porque apanhei por causa do Gilson.

1990
Em janeiro de 1990, meu avô soube que seria avô. Quase infartou "avô aos 40". Eu era um presentinho. O meu avô conta que eu sempre fui inteligente. Ele me levava ao banco e eu falava "vovô a gente vai no badesco? Ou no basil?", e quando voltávamos ao bar em que meu avô trabalhava eu sabia o nome de todos os amigos dele e de todas as cervejas. Eu gostava de molhar o pirulito na cerveja, não sei porque.

2001
"Eu quero aprender a tocar teclado", disse para o meu avô e ele comprou para mim. Estamos no mês de julho e é aniversário da minha mãe. Com certeza o Gilson vem também. Estamos todos na casa da minha tia e todos querem que eu toque "parabéns pra você" quando minha mãe chegar. Assim que vejo o Gilson chegar eu saio correndo e não toco. Fica aquele clima. Minha mãe fala que está triste comigo. Meu avô me olha bravo, lembro do tapa. Cumprimentei o Gilson, mas não toquei. Meu avô disse "tudo bem, já é um começo".

2003
Meus avós e meus tios vão deixar de morar em São Miguel porque o aluguel está caro. Vão mudar para Guaianazes, para apartamentos próprios. Eu detesto aquele lugar, mas também não quero morar com minha mãe. É tudo tão distante. Fico distante da escola, dos amigos, da igreja. Vou morar com minha mãe. Todo fim de semana meus avós dormem lá para ficar com o bar aberto até um pouco mais tarde. Sou novinha, mas tenho uma aparência de mais velha. Tenho amigos bem estranhos. Vou para muitas festas. Minha mãe me dá muita liberdade e meu avô me espera chegar, independente do horário. Meus próximos três anos serão assim. De algum modo fui muito feliz perto da minha mãe.
Um dia eu estava voltando de uma festa com uns amigos e a polícia parou nosso carro. E parou bem pertinho do bar do meu avô. O meu coração gelou. Tive muito medo. Os amigos do meu avô, aqueles mesmos amigos da minha infância, me viram e falaram "é a neta do Julinho?!" e eu senti vergonha. Naquele dia percebi que aquelas pessoas não eram minhas amigas. Um deles me emprestou um casaco e nele havia drogas. Nada aconteceu comigo. Milagre. Eu me lembrei da minha tia dizendo "não desafie a autoridade do meu pai, ele não merece esse desgosto". Eu sabia que meu avô estava triste comigo.

2007
Estou morando com meus avós novamente. Minha mãe decidiu casar com o Gilson e eles mudaram de casa. Agora eu aceito bem o Gilson, já vai fazer quase dez anos que eles estão juntos. Ele ama minha mãe e isso que importa.
Eu estudo no Brás. Meu avô acorda junto comigo, todos os adias, às 05h20 da manhã. Ele tem um bilhete especial para idoso. Ele me leva até o ponto de ônibus, depois até a estação de trem e volta para casa. Meu avô tem saúde. Meu avô é um caçador de promoções. Ele não pode ver uma oferta de mercado na tv e corre para comprar, seja para abastecer o bar ou a nossa casa.

2008
Ano do vestibular, eu sempre estudei em escola pública e quero estudar em universidade pública, mas sem cursinho pré-vestibular fica difícil. O meu avô disse que se eu quiser a gente corre atrás. A gente se aperta, procura um cursinho mais barato e eu vou estudar. Eu e meu avô vamos ao etapa, ao objetivo, ao cursinho da poli, ao universitário e no fim encontramos o instituto henfil. Eu estudei e passei no vestibular. Eu cheguei no bar chorando e contando para o meu avô e ele disse "eu sabia!".
[eu sempre quis estudar muito porque sonhava em ganhar bem e comprar uma casa para o meu avô, para os meus tios e para os meus pais, mas eu cresci e vi que não era tão simples assim. Uma vez me disseram que se eu desse orgulho para o meu avô, isso seria o suficiente para ele.]

2009
Estou na universidade. Meu avô enche a boca para contar isso aos amigos. Sou monitora de disciplina e vou fazer iniciação científica. "Socorro, preciso de uma conta para receber um salário.". Quem me acompanha? Meu avô. Agora aquela garotinha que falava "Basil", tem uma conta no Banco do Brasil, ele me disse. E deu risada.

2015
Quase todos os meses do ano passado meu avô e eu estivemos em consultas médicas. Nos anos de 2013 e 2014 meu avô tentou se aposentar de todas as maneiras, mas não deu certo. Foram várias viagens à terra natal: Bodocó - PE, e lá ele ficou bem doente. Voltou e desistimos. Paramos tudo e fomos cuidar da saúde. 
Desde que soubemos da cirurgia na próstata, estamos passando em vários médicos. Para a cirurgia ser liberada passamos com o pneumatologista, com o anestesista e com o cardiologista. Todos liberaram, menos o cardiologista. de todos os exames necessários ficou faltando o cateterismo.
Em janeiro começamos a correr atrás de tudo, faltavam três meses para o meu casamento. E eu ouvia meu avô dizendo que queria sobreviver até lá. Que a missão dele só estaria completa quando ele me casasse. Aquilo doía, ninguém queria ouvir aquilo. Meu avô vivia com as pernas inchadas, com dor na coluna, com fortes dores de cabeça e uma dor contínua que começava no coração e ia até o braço.

Casamento
Em março eu me casei. Um dos meus maiores sonhos era que meu avô me levasse ao altar. Mas tinha meu pai. No fim meu pai me levou até metade do caminho, mas quem me entregou para o meu esposo foi meu avô. O meu avô fez muito pelo meu casamento. Emprestou cheques para alugar o sítio, comprou toda a carne - porque sempre sabia das ofertas - e ainda dizia que se a gente quisesse ele teria visto uma casa muito boa e barata também. O meu avô dizia  para todos que era meu pai e era mesmo. Quando alguém chegava no bar, além de contar toda a minha, a nossa história, ele dizia que meu casamento seria como casamento de rico. O meu avô também tinha muito orgulho de dizer que eu estava no mestrado e que ia sempre para Campinas.
No dia do meu casamento eu disse tudo que nunca tive coragem de dizer. Eu disse o quanto eu amava meu avô e tudo que ele significava para mim. O meu avô não era de dizer "Eu te amo", mas não precisava, todos nós sabíamos.

Nascimento do Isaac
Quando o Isaac nasceu, em 2008, minha família disse que eu virei gente. Eu sempre tive dificuldade de demonstrar carinho e afeto, tinha medo de ser rejeitada. Mas quando o Isaac nasceu eu não tinha medo de que ele me julgasse, eu era apenas eu, eu era quem eu queria ser com todos. Para o Isaac eu consigo dizer "eu te amo" sempre. Ele conseguiu quebrar uma barreira forte que eu criei. Desde que ele nasceu eu abraço mais, eu beijo mais, eu sorrio mais e no fundo eu não sei porque. Era para ser. Depois do meu casamento meu avô dizia que a casa estava vazia e o Isaac estava todos os dias lá. Meu avô deixava ele dominar a tv e meu avô começou a fazer a lição de casa com ele, no meu lugar.

Abril de 2015
Este é o mês do meu avô, ele fez 65 anos. As portas da nossa casa, minha e do Cléber, estavam abertas para comemorar o aniversário do sr. Júlio. Foi um dia maravilhoso! Nós conversávamos sobre a cor da parede e eu perguntei quando meu avô pintaria a parede lá de casa e ele respondeu "ué, mas a sua casa agora é aqui" e eu ri, então ele disse "brincadeira filha, aquela sempre vai ser a sua casa". O meu quarto lá permanece o mesmo. Depois de um tempo eu falei para minha tia "como o vô está calado" e ela disse "ele está refletindo e observando o quanto você está feliz, não se preocupe filha ele está feliz!".

Maio de 2015
Finalmente voltamos a correr atrás de todos os exames e burocracias que diziam respeito a cirurgia da próstata. Tínhamos adiado, devido o casamento. Teve um dia que fomos de porta em porta para conseguir um encaminhamento para o cateterismo e nada. Meu avô sempre foi muito nervoso, mas também era inocente e confiava muito em todo mundo.
As pessoas deviam ele no bar e as dividas se tornavam exorbitantes, mas ele acreditava que todos pagariam. Às vezes eu explicava algumas coisas e ele não acreditava ser verdade. Outra característica do meu avô é que não podia ser contrariado. A experiência de vida fazia ele achar que estava sempre com a razão. E quando o assunto era política? Socorro, fugíamos.
No dia seguinte a correria da procura pelo encaminhamento, meu avô só faltou quebrar o ambulatório até conseguir o pedido para o cateterismo. E conseguiu.

Junho de 2015
Este é o mês do aniversário da minha tia. Mas não comemoramos, não sei porque. No dia 24 fomos ao Hospital Santa Marcelina e lá o cardiologista nos atendeu. Depois que meu avô ficou doente ele queria contar para todos os médicos toda a história das doenças dele até chegar ali. Eu pensava "vô, eles não querem saber a história, eles querem saber o problema". O médico nos atendeu muito bem e fez muitas perguntas ao meu avô. [Eu não vou esquecer esse médico, porque conheci uns que tratavam os pacientes como nada. Um dia eu ouvi um deles dizer que todo pobre é vagabundo e aquilo se referia ao meu avô, aquilo partiu meu coração. Tudo que eu queria era que meu avô não escutasse aquilo, porque a vida do meu avô foi dedicar-se ao trabalho e ao outro, ele vivia pra gente] Com todas as perguntas respondidas, o médico analisou os exames anteriores e disse que o caso do meu avô era raro. Imediatamente ele marcou o cateterismo. Sempre que a gente saía das consultas meu avô queria que eu comesse alguma coisa, era pão de queijo, bolo, suco...

Julho de 2015
Este é o mês do aniversário da minha mãe. Foi comemorado aqui em casa com toda a minha família. O meu avô obedecia a dieta rigorosamente, só saladinha e a carne praticamente sem gordura. Duas semanas depois da consulta, meu avô foi fazer o cateterismo e não deu certo. Quem o acompanhou foi meu tio, sempre de carro, porque meu avô andava bem devagarinho para não fazer muito esforço.
O chefe da cardiologia foi conversar com meu avô e disse que interromperia o cateterismo porque ele estava com três veias entupidas e com a aorta comprometida. Disse também que assim que vagasse um leito ele seria chamado para operar o coração e depois de um tempo teria a liberação para a cirurgia na próstata.
Naquele dia meu coração gelou e eu chorei com muito medo. Escrevi o poema "Pequena morte" e aquilo me acalmou em alguma medida. 
No fim desse mês eu voltei com meu avô ao hospital e acertamos todos os papéis da internação. O médico perguntou ao meu avô se ele tinha dúvidas sobre a cirurgia, seriam três pontes de safena e a restauração da aorta, então meu avô perguntou se abririam o peito dele. Eu me assustei com a pureza do meu avô e o medico brincou com ele dizendo que achava que sim. Aquele médico me passava confiança e eu descansei. O meu avô sempre me dizia "obrigado" por acompanhá-lo às consultas. Os médicos brincavam dizendo "sempre acompanhado da neta, hein, sr. Júlio" e ele respondia "a família é a única riqueza que a gente tem".

Agosto de 2015
Neste mês comemoramos o dia dos pais. Eu passei o sábado inteiro com meu avô porque no domingo visitaríamos meu sogro. Eu dei uma camisa branca para o meu avô, mas não serviu, ele emagreceu, mas o barrigão ainda era o mesmo. Eu não gostava de ficar muito tempo no bar, mas fiquei até fechar. O meu avô era cheio de anedotas, quando ele viu o carro do Cléber disse "com dois litros de água eu deixo esse carro limpo" e rimos.
Mais tarde o Isaac disse no ouvido do meu avô "vô, amanhã é dia dos pais e o senhor tem que ir na igreja", "vô, eu amo o senhor". O meu avô riu e disse que iria sim. O meu avô sempre quis ir à igreja e ia. Mas não sempre. Ele tinha uma consciência inigualável de que não poderia frequentar uma igreja tendo um bar como meio de sustento. Ele não bebia, não fumava. Mas em todas as datas especiais ele ia à igreja. E nesses últimos dias mais ainda. Uma vez foram ao bar, oraram por ele e ele aceitou Jesus. "Não é porque uma pessoa não professa uma fé publicamente que ela não é salva", eu ouvi isso e guardei. Meu avô agia como um verdadeiro cristão.
No dia 11, às 15h00, me ligaram do hospital chamando meu avô para internação, às 19h00. Eu liguei para minha tia e ela foi buscá-lo de carro. Neste dia meu avô encheu a dispensa da minha avó, fez todas as contas do bar, ligou para o seu irmão favorito de Goiás e deixou o dinheiro de pagar tudo que viria, mais o cartão do banco e a senha. [Pouco tempo antes, ele me pediu para levá-lo para visitar seu tio Pedrinho e comprou toda a cozinha que minha avó queria.] Minha tia e minha avó disseram que não precisava de tudo aquilo e ele disse "vocês vão precisar, sim.".
Meu avô foi internado. Eu ligava no celular dele, e nada, ele tinha esquecido no bar. Minha tia foi acompanhante dele. Todo o momento eu falava com ela, não pedi para falar com ele, tinha certeza que o veria no outro dia no horário da visita. Ela nos contou que eles não dormiram. Ele tomou banho gelado porque não sabia como mexer no chuveiro e estava com vergonha dela. Eles passaram a noite toda conversando sobre a família e ele falou como enxergava cada um de nós. Ao lado tinha um paciente bem velhinho que fez a mesma cirurgia que ele faria e sobreviveu.
No dia 12, dia em que eu e meu esposo completávamos seis anos de namoro, às 07h00, começou a cirurgia do meu avô. Por pouco minha mãe não consegue vê-lo, ela chegou às 06h43, meu esposo me deixou com minha avó em casa e levou minha mãe para o hospital. O médico disse para minha tia "se despede dele" e ela disse "pai, daqui a pouco a gente se vê, não precisa ter medo" e minha mãe disse "pai, eu te amo". Meu avô disse que viveu para as mulheres da vida dele, minha avó, minha mãe e minha tia. Meu avô tinha o cabelinho todo branco. A cirurgia duraria em média seis horas e meu avô ficaria dez dias em recuperação no hospital. A cada uma hora um enfermeiro dava notícias e minha tia e minha mãe ligavam. Estava tudo bem.
E fui levar o Isaac na escola e minha avó ficou em casa esperando que alguém fosse buscá-la para visitar meu avô. A cirurgia terminaria às 14h00. O Isaac entra na escola às 13h30. Depois de deixá-lo lá, no caminho, minha mãe me liga e pergunta onde eu estou. Quando respondo ela diz "o vô faleceu", e eu disse "não credito". Fiquei transtornada. Desci do ônibus, eu estava na rua do bar. Uma mulher me ajudou. Eu não acreditava. Eu liguei para o meu esposo. Eu fui para o hospital. Cheguei lá e minha mãe e tia estavam aos prantos. Que dia terrível! Que dor que atravessa a alma!
O Cléber, meu tio Carlos, o Gilson chegaram. Temos companheiros. Somos uma família de mulheres enlutadas. Eles resolveram tudo e nós chorávamos. As pessoas foram chegando ao hospital e minha avó sem saber de nada.
Voltamos para casa e meu tio e eu demos a notícia. 47 anos de casados, minha avô perdeu o amor de sua vida. Perdeu o grande homem que meu avô foi. A vida se foi. Acreditamos que o que vemos é real, mas não aceitamos a realidade. Não aceitamos porque nossa essência é vida. Fomos criados para viver. Mesmo com a esperança do reencontro.
A partir da meia noite do dia 13 velamos o meu avô. O meu avôzinho. O enterramos às 10h00. Aproximadamente umas 300 pessoas presentes, telefonemas infinitos. Um amor que não cabe no peito. Perder alguém que amamos é como perder parte da vida. Eu li o poema "Pequena morte" e ele se foi junto com o caixão. As mulheres dessa família decidem ser fortes pela minha avó. Mas quando menos percebemos estamos chorando. Essa dor não vai passar, talvez se amenize. 
Quanta burocracia para resolver. Ninguém se prepara para a morte, mesmo sabendo que ela é certa. Hoje eu penso que Deus de alguma maneira nos avisa sobre o nosso última dia. Meu avô deixou tudo perfeito. Penso que Ele nos avisa porque o amor é tão grande que Ele nos dá mais uma chance para chegarmos-nos a Ele. Meu avô faleceu e está melhor que nós. Sem dores.
Quando vi a sacola de remédios que meu avó tomava eu pensei nas dores que só ele sabia que sentia. Ainda sim ele lutou para viver. Resistiu a duas paradas cardíacas e na terceira se foi. No nosso pensamento fica um monte de "e se" que não adianta pensar. Nosso pensamento fica no homem maravilhoso que meu avô foi.
Tem gente que tem coragem de se aproveitar da viúva enlutada, absurdo. Meu avô, dias antes de falecer, me pediu para cuidar da minha avó, disse que ficava triste com o modo como eu a tratava. Eu vou cuidar! Agora e adiante estamos todas juntas, cuidando umas das outras e sendo cuidadas.

Setembro de 2015
Hoje é primeiro de setembro, faltam vinte dias para o meu aniversário. E este será o primeiro sem o meu avô. Eu sempre falei para todos os meus amigos a pessoa incrível que o meu avô era. Sempre falei e sempre vou falar, até chegar o dia em que eu não complete mais aniversários.