17 de dezembro de 2015

palavra

há palavras e palavras
há palavras que são impronunciáveis
e isso significa algo YHWH – (יהוה)
há palavras que como mortais
não podemos dizer, pois
ainda não conhecemos a eternidade
"nunca mais", "para sempre"
às vezes palavras não dão conta
do que queremos dizer
às vezes não sabemos como dizer
há palavras que são inefáveis
inefável é uma palavra
há palavras que ditas por personas
tornam-se reais
sou um ditador e digo "guerra"
uma guerra acontece
sou um juiz e digo "condenado"
alguém é preso
sou um médico e digo "morte"
alguém faleceu, uma família enlutada
sou eu sou e digo "luz", "levanta e anda"
as trevas se acabam alguém ressuscita
sou uma menina que ouviu "seu avô faleceu"
sou a mesma menina que tem que dizer
"vó, o vô faleceu", mas eu não disse
minha avó entendeu, preferimos o silêncio
as palavras do eu sou ecoam
"perdão", "graça", "porvir"
quando ele diz está dito
ele é a palavra.

alzheimer



tenho apenas um quarto de século
mas dito assim parece muito.
leio sobre a memória e o tempo
sei que é bom não lembrarmos de tudo.
esses dias eu assisti um filme
cujo nome não lembro agora
mas a personagem tinha quase meio século
ela era linguísta
esquecia as palavras e as coisas
esquecia inclusive o nome do homem
que escreveu esse livro.
esses dias também conversei com uma
brasileirinha oriental
ela vive com o avô, ela é a memória dele
pois não se lembra de nada.
lembro partes da minha infância,
da minha adolescência
esqueço o que comi ontem
o que fiz há um mês...
vejo fotos, relembro momentos
e se com o passar do tempo
me esquecer do que resta?
tenho medo que a doença me faça esquecer
o timbre da voz do meu avô.

28 de setembro de 2015

Exílio

I
desde sempre eu ouço que
no oriente o povo viaja
e no ocidente também.
eu tive uma professora que
estuda literatura de viagem,
a primeira vez que escrevi sobre isso
falei do Odisseu. essa viagem
todos conhecem e as da minha terra
também.
nesta época eu aprendi que ex.
significa fora, e ilio é ilha
uns têm vocação, outros obrigação
de estar fora da ilha.
eu nunca tive coragem de tirar meus pés
da minha ilha, mas quando o fiz me
desencontrei
isso porque tirei apenas um pé
o outro ficou
estou prestes a tirar os dois pés
então posso enlouquecer

II
as pessoas que estão fora da ilha
podem sair porque alguém mandou,
às vezes esse alguém nem é da ilha
mas manda.
às vezes sair da ilha é a melhor opção
não foi uma nem duas vezes que
os judeus ouviram uma voz que dizia
vocês têm uma ilha prometida, vão
e eles foram. isso era bom.
esse povo já viveu na ilha dos
egípcios, babilônios, sírios
eles brigam até hoje para ter uma ilha
e chamar de deles.
na verdade o mundo tem muitas ilhas
e em todas elas tem judeus
em todas elas tem orientais
ouvi dizer que um bigodudo
queria que a ilha dos judeus fosse
em outro mundo e por isso
quase todos eles morreram sem ilha.


III.
tem gente que diz que mulheres não têm ilhas
certo dia eu ouvi dizer que a ilha aonde
habitam meninos de 16 a 18 anos
tem muitos, muitos meninos
mas a ilha aonde habitam meninas
da mesma idade tem poucas, poucas meninas.
eu fiquei feliz, mas soube que essas meninas
ocupam uma ilha invisível, e nela, o corpo
custa dinheiro. foi aí que descobri que
ainda habito a ilha da inocência.
ontem uma amiga relatou que tem muitos sírios
querendo entrar na Alemanha
- a ilha do bigodudo - mas lá não "cabem" todos,
então as meninas voltam à ilha invisível do dinheiro
pelo corpo e pagam para que os meninos entrem,
enquanto elas ficam na ilha aonde tem muito, muito
tiro, bomba, violência, fome MORTE.
dentro de uma ilha cabem muitas ilhas
e alguém coloca as meninas em ilhas imaginárias
como preconceito e desigualdade e "tudo bem!"

IV.
há quatro semanas tenho ouvido adolescentes
falar abertamente sobre ilhas
eles criticam as ilhas imaginárias, mas apoiam
a restrição das ilhas reais
se mais gente entrar na nossa ilha não vai ter
emprego, moradia, saneamento, alimento
mas eles estão confusos, pois seu mestre é um
refugiado. real e imaginário
ele foge da ilha da injustiça, da corrupção
ele habita a ilha do altruísmo, da bondade
difícil. esses adolescentes falam sobre
homossexualismo, feminismo, racismo
aqueles que habitam essas ilhas sofrem
porque quem não as habita acha que é melhor.
muitas vezes eu queria não ter ilha
mas a missão de governar as ilhas está aí,
tem gente que governa muito mal as ilhas.
em outro tempo tínhamos duas opções
obedecer aos maus governantes ou morrer
então quem podia fugia de sua ilha.

V.
as canções e os poemas que eu mais gosto
são de quem está fora da ilha.
estar fora da própria ilha é propício
para escrever. quem está fora reconhece
no outro algo que é impossível perceber
dentro da ilha em que habita. quem te vê
cria uma imagem da sua ilha e que imagem é esta?
que imagem você tem da ilha que não habita?
- depende, se for uma ilha vizinha nem pensar,
mas se for lá em cima do mapa, eu quero ir
eu acho você um bobo.
a ilha não é uma criação é uma construção
o que mais importa na ilha são as pessoas
as pessoas tornam a ilha melhor, mas quem
inventou esse conceito de melhor?
pensando bem as pessoas também tornam
a ilha pior. por que os animais vivem bem?
eles não pensam em melhor e pior
às vezes eu me sinto anormal fora da ilha social
mas isso inventaram porque não sou fantoche real.



7 de setembro de 2015

ausência

sentimos que vamos vê-lo
já é dia e minha tia vai trabalhar
ela pensa ouvir a porta abrir
e ver você dando bom dia
eu cheguei um pouco antes dela sair
e penso ver você deitado no sofá
a chave fica fora da maçaneta
e quando abro a porta não o vejo
a insônia tomou conta do quarto ao lado
remédios que já não fazem dormir
um choro de cortar o coração
na sala há um novo retrato
você aos vinte e aos sessenta e poucos
mais suas filhas e netos, mas você não viu
eu cheguei e quero cuscuz
ninguém tem ânimo para fazê-lo
todos estamos reunidos para o café,
mas falta alguém
olhamos o retrato
é a primeira refeição do dia
todos estamos em silêncio
o fim de semana está chegando,
mas minha mãe não vai ao bar
porque você não está lá, mas está...
é estranho
a noite vai chegar e os passinhos lentos
com o barulhinho da chave são inaudíveis
apenas a noite chega e ninguém chega com ela
ela veio para ficar
e eu sinto uma ausência no olhar de todos

1 de setembro de 2015

Diário dos últimos dias

Esta foto dei para o meu avô, no dia dos pais de 2007, num porta-retrato que permanece até hoje na estante da casa dos meus avós.


nota introdutória
O título deste texto é "Diário dos últimos dias", estes últimos dias referem-se aos últimos dias de vida do meu avô e aos meus últimos dias com ele, também tem um pouco de memória. Talvez este texto tenha algo de literário ou autobiográfico, já que autobiografia é - em certa medida - uma invenção do eu, pois eu escolho o que contar.

Apresentação
Meu nome é Mariane Tavares, 24 anos, casada, sem filhos. Esposa do Cléber. Filha de Elaine e Antonio. Sobrinha da Elisangela e do Carlos. Irmã da Andressa e do Victor. Prima do Lucas e do Isaac. E, principalmente, neta do Júlio e da Marinalva. Dizem que tenho o jeito do meu avô e sou a cara da minha avó. Esta é minha família materna. Minha mãe recebeu o sobrenome Tavares do meu avô. Todas as vezes que assino um texto escrevo Mariane Tavares, mesmo tendo outros dois sobrenomes que me acompanham (Sousa, pai, Oliveira, esposo, respectivamente). Entre essas pessoas apresentadas, fui a primeira a ser graduada. Estudei letras. Escrevo poemas, me identifico com a literatura, e a maioria do tempo falo de todos eles sem que eles saibam.


outubro de 2014
Hoje é sexta-feira, meu avô tem consulta marcada com o cardiologista. Desta vez eu não tenho como acompanhá-lo, a consulta foi marcada para às 18h00 e às 19h00 eu tenho que encontrar um grupo de adolescentes porque vou ser monitora em um acampamento. O acampamento tem uma programação bem dinâmica e eu só consigo ver o celular no final do dia. Olhei o celular na sexta, no sábado e no domingo. Nenhuma mensagem. Nenhum telefonema. Tentei ligar em casa duas vezes, só chamava. Meus avós deviam estar trabalhando.
Quando eu cheguei em casa minha tia, que acompanhou meu avô na consulta, me disse que no hospital meu avô teve um mal estar, uma forte dor no coração e o cardiologista pediu diversos exames. Meu avô foi atendido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e no Cruz Azul, hospital que ele faz tratamento, os exames pedidos só podem ser feitos por um convênio. A minha tia tem carro - nesse sentido foi bom eu não poder acompanhá-lo, pois sempre vamos de ônibus - e o levou às pressas para o Hospital Santa Marcelina. Lá, eles atenderam meu avô, fizeram todos os exames necessários e meu avô ficou internado no fim da sexta, o sábado e liberado no domingo de manhã.
Depois de saber toda essa história perguntei porque ninguém me ligou e minha tia respondeu que estava tudo sob controle, que se tivessem me ligado eu iria querer voltar às pressas para casa e ninguém queria me preocupar. Neste dia meu avô teve um início de infarto.

2011
Neste ano descobrimos que meu avô está com hiperplasia, que é um aumento no tamanho da próstata, não é câncer. O meu avô é atendido pela dra. Larissa, eu não esqueço porque sempre que o remédio manipulado que ela receitou acaba, ele me pede para ligar na farmácia e dizer que foi ela quem pediu. Outra coisa que o meu avô só pede para mim é que eu corte a pontinha da cutícula da sua unha. Além disso, ele também pede tesoura - porque eu sempre tenho materiais de papelaria - para cortar o comprimido de AS.

2013
Já faz quatro anos que a dra. Larissa receitou um remédio manipulado para o meu avô. Ela acreditava que com o uso contínuo do remédio a próstata voltaria ao tamanho normal, mas não. O remédio apenas estabilizou. O tamanho não reduziu, mas também não aumentou.
Fomos ao AMA (Assistência Médica Ambulatorial) do Burgo Paulista e ela nos encaminhou para o Hospital Cruz Azul, disse que lá poderiam nos atender melhor pois meu avô terá que fazer uma cirurgia de prostatectomia.
Hoje eu senti uma leve preocupação no olhar do meu avô. Voltamos em silêncio.

1999
Hoje eu levei meu primeiro e único tapa (fui saber disso muito tempo depois). Nós estamos todos reunidos na casa da minha tia para um churrasco. Minha mãe vai apresentar o namorado dela, o Gilson. Minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha seis anos, ou seja, em 1996. Minha idade acompanha os números do ano. Eu não quero conhecê-lo. Minha família está toda alegre. Querem que minha mãe seja feliz. Eu também quero. Mas ela fica pouco tempo comigo. Trabalha. E agora namora esse cara. Eu já pensei em fugir da casa dos meus avós. Mas minha tia achou meu bilhete antes que desse tempo de fugir. Minha tia é minha melhor amiga fraterna. Minha tia me faz rir - com ela eu dei minha primeira gargalhada. Minha tia me ensinou a ler, a jogar vôlei, a andar de bicicleta, a dançar e é ela quem me leva para igreja.
Voltando ao tapa... quando o namorado da minha mãe chegou eu comecei a brincar. Peguei a motoca do Lucas e comecei a jogar nos pés do Gilson. Ele deu uma risadinha e tudo bem. Eu joguei a motoca nos pés dele, uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes. Meu avô me chamou e disse que se eu jogasse a motoca de novo ele iria conversar comigo. Então eu fui lá e joguei de novo. O meu avô pegou na minha mão e me levou para o quarto. Eu não entendi nada, "o que será que ele quer conversar comigo?", pensei. Ele me disse "eu falei que não era para você jogar a motoca, não falei?" e eu respondi "não, vô, o senhor disse que se eu jogasse o senhor iria conversar comigo" e ele disse "o quê? Você está me respondendo?" eu não entendi nada. Meu avô me pediu para pôr as mãos para frente, como quem brinca de adoleta, e eu coloquei achando que ia ganhar alguma coisa: e ganhei! Meu avô me deu um tapa em cada mão e eu nunca esqueci. O chinelo era de coro. Assim que terminou meu avô disse "agora vai lá e derruba a motoca de novo", nesse dia eu aprendi o que era ironia. E fiquei muito brava porque apanhei por causa do Gilson.

1990
Em janeiro de 1990, meu avô soube que seria avô. Quase infartou "avô aos 40". Eu era um presentinho. O meu avô conta que eu sempre fui inteligente. Ele me levava ao banco e eu falava "vovô a gente vai no badesco? Ou no basil?", e quando voltávamos ao bar em que meu avô trabalhava eu sabia o nome de todos os amigos dele e de todas as cervejas. Eu gostava de molhar o pirulito na cerveja, não sei porque.

2001
"Eu quero aprender a tocar teclado", disse para o meu avô e ele comprou para mim. Estamos no mês de julho e é aniversário da minha mãe. Com certeza o Gilson vem também. Estamos todos na casa da minha tia e todos querem que eu toque "parabéns pra você" quando minha mãe chegar. Assim que vejo o Gilson chegar eu saio correndo e não toco. Fica aquele clima. Minha mãe fala que está triste comigo. Meu avô me olha bravo, lembro do tapa. Cumprimentei o Gilson, mas não toquei. Meu avô disse "tudo bem, já é um começo".

2003
Meus avós e meus tios vão deixar de morar em São Miguel porque o aluguel está caro. Vão mudar para Guaianazes, para apartamentos próprios. Eu detesto aquele lugar, mas também não quero morar com minha mãe. É tudo tão distante. Fico distante da escola, dos amigos, da igreja. Vou morar com minha mãe. Todo fim de semana meus avós dormem lá para ficar com o bar aberto até um pouco mais tarde. Sou novinha, mas tenho uma aparência de mais velha. Tenho amigos bem estranhos. Vou para muitas festas. Minha mãe me dá muita liberdade e meu avô me espera chegar, independente do horário. Meus próximos três anos serão assim. De algum modo fui muito feliz perto da minha mãe.
Um dia eu estava voltando de uma festa com uns amigos e a polícia parou nosso carro. E parou bem pertinho do bar do meu avô. O meu coração gelou. Tive muito medo. Os amigos do meu avô, aqueles mesmos amigos da minha infância, me viram e falaram "é a neta do Julinho?!" e eu senti vergonha. Naquele dia percebi que aquelas pessoas não eram minhas amigas. Um deles me emprestou um casaco e nele havia drogas. Nada aconteceu comigo. Milagre. Eu me lembrei da minha tia dizendo "não desafie a autoridade do meu pai, ele não merece esse desgosto". Eu sabia que meu avô estava triste comigo.

2007
Estou morando com meus avós novamente. Minha mãe decidiu casar com o Gilson e eles mudaram de casa. Agora eu aceito bem o Gilson, já vai fazer quase dez anos que eles estão juntos. Ele ama minha mãe e isso que importa.
Eu estudo no Brás. Meu avô acorda junto comigo, todos os adias, às 05h20 da manhã. Ele tem um bilhete especial para idoso. Ele me leva até o ponto de ônibus, depois até a estação de trem e volta para casa. Meu avô tem saúde. Meu avô é um caçador de promoções. Ele não pode ver uma oferta de mercado na tv e corre para comprar, seja para abastecer o bar ou a nossa casa.

2008
Ano do vestibular, eu sempre estudei em escola pública e quero estudar em universidade pública, mas sem cursinho pré-vestibular fica difícil. O meu avô disse que se eu quiser a gente corre atrás. A gente se aperta, procura um cursinho mais barato e eu vou estudar. Eu e meu avô vamos ao etapa, ao objetivo, ao cursinho da poli, ao universitário e no fim encontramos o instituto henfil. Eu estudei e passei no vestibular. Eu cheguei no bar chorando e contando para o meu avô e ele disse "eu sabia!".
[eu sempre quis estudar muito porque sonhava em ganhar bem e comprar uma casa para o meu avô, para os meus tios e para os meus pais, mas eu cresci e vi que não era tão simples assim. Uma vez me disseram que se eu desse orgulho para o meu avô, isso seria o suficiente para ele.]

2009
Estou na universidade. Meu avô enche a boca para contar isso aos amigos. Sou monitora de disciplina e vou fazer iniciação científica. "Socorro, preciso de uma conta para receber um salário.". Quem me acompanha? Meu avô. Agora aquela garotinha que falava "Basil", tem uma conta no Banco do Brasil, ele me disse. E deu risada.

2015
Quase todos os meses do ano passado meu avô e eu estivemos em consultas médicas. Nos anos de 2013 e 2014 meu avô tentou se aposentar de todas as maneiras, mas não deu certo. Foram várias viagens à terra natal: Bodocó - PE, e lá ele ficou bem doente. Voltou e desistimos. Paramos tudo e fomos cuidar da saúde. 
Desde que soubemos da cirurgia na próstata, estamos passando em vários médicos. Para a cirurgia ser liberada passamos com o pneumatologista, com o anestesista e com o cardiologista. Todos liberaram, menos o cardiologista. de todos os exames necessários ficou faltando o cateterismo.
Em janeiro começamos a correr atrás de tudo, faltavam três meses para o meu casamento. E eu ouvia meu avô dizendo que queria sobreviver até lá. Que a missão dele só estaria completa quando ele me casasse. Aquilo doía, ninguém queria ouvir aquilo. Meu avô vivia com as pernas inchadas, com dor na coluna, com fortes dores de cabeça e uma dor contínua que começava no coração e ia até o braço.

Casamento
Em março eu me casei. Um dos meus maiores sonhos era que meu avô me levasse ao altar. Mas tinha meu pai. No fim meu pai me levou até metade do caminho, mas quem me entregou para o meu esposo foi meu avô. O meu avô fez muito pelo meu casamento. Emprestou cheques para alugar o sítio, comprou toda a carne - porque sempre sabia das ofertas - e ainda dizia que se a gente quisesse ele teria visto uma casa muito boa e barata também. O meu avô dizia  para todos que era meu pai e era mesmo. Quando alguém chegava no bar, além de contar toda a minha, a nossa história, ele dizia que meu casamento seria como casamento de rico. O meu avô também tinha muito orgulho de dizer que eu estava no mestrado e que ia sempre para Campinas.
No dia do meu casamento eu disse tudo que nunca tive coragem de dizer. Eu disse o quanto eu amava meu avô e tudo que ele significava para mim. O meu avô não era de dizer "Eu te amo", mas não precisava, todos nós sabíamos.

Nascimento do Isaac
Quando o Isaac nasceu, em 2008, minha família disse que eu virei gente. Eu sempre tive dificuldade de demonstrar carinho e afeto, tinha medo de ser rejeitada. Mas quando o Isaac nasceu eu não tinha medo de que ele me julgasse, eu era apenas eu, eu era quem eu queria ser com todos. Para o Isaac eu consigo dizer "eu te amo" sempre. Ele conseguiu quebrar uma barreira forte que eu criei. Desde que ele nasceu eu abraço mais, eu beijo mais, eu sorrio mais e no fundo eu não sei porque. Era para ser. Depois do meu casamento meu avô dizia que a casa estava vazia e o Isaac estava todos os dias lá. Meu avô deixava ele dominar a tv e meu avô começou a fazer a lição de casa com ele, no meu lugar.

Abril de 2015
Este é o mês do meu avô, ele fez 65 anos. As portas da nossa casa, minha e do Cléber, estavam abertas para comemorar o aniversário do sr. Júlio. Foi um dia maravilhoso! Nós conversávamos sobre a cor da parede e eu perguntei quando meu avô pintaria a parede lá de casa e ele respondeu "ué, mas a sua casa agora é aqui" e eu ri, então ele disse "brincadeira filha, aquela sempre vai ser a sua casa". O meu quarto lá permanece o mesmo. Depois de um tempo eu falei para minha tia "como o vô está calado" e ela disse "ele está refletindo e observando o quanto você está feliz, não se preocupe filha ele está feliz!".

Maio de 2015
Finalmente voltamos a correr atrás de todos os exames e burocracias que diziam respeito a cirurgia da próstata. Tínhamos adiado, devido o casamento. Teve um dia que fomos de porta em porta para conseguir um encaminhamento para o cateterismo e nada. Meu avô sempre foi muito nervoso, mas também era inocente e confiava muito em todo mundo.
As pessoas deviam ele no bar e as dividas se tornavam exorbitantes, mas ele acreditava que todos pagariam. Às vezes eu explicava algumas coisas e ele não acreditava ser verdade. Outra característica do meu avô é que não podia ser contrariado. A experiência de vida fazia ele achar que estava sempre com a razão. E quando o assunto era política? Socorro, fugíamos.
No dia seguinte a correria da procura pelo encaminhamento, meu avô só faltou quebrar o ambulatório até conseguir o pedido para o cateterismo. E conseguiu.

Junho de 2015
Este é o mês do aniversário da minha tia. Mas não comemoramos, não sei porque. No dia 24 fomos ao Hospital Santa Marcelina e lá o cardiologista nos atendeu. Depois que meu avô ficou doente ele queria contar para todos os médicos toda a história das doenças dele até chegar ali. Eu pensava "vô, eles não querem saber a história, eles querem saber o problema". O médico nos atendeu muito bem e fez muitas perguntas ao meu avô. [Eu não vou esquecer esse médico, porque conheci uns que tratavam os pacientes como nada. Um dia eu ouvi um deles dizer que todo pobre é vagabundo e aquilo se referia ao meu avô, aquilo partiu meu coração. Tudo que eu queria era que meu avô não escutasse aquilo, porque a vida do meu avô foi dedicar-se ao trabalho e ao outro, ele vivia pra gente] Com todas as perguntas respondidas, o médico analisou os exames anteriores e disse que o caso do meu avô era raro. Imediatamente ele marcou o cateterismo. Sempre que a gente saía das consultas meu avô queria que eu comesse alguma coisa, era pão de queijo, bolo, suco...

Julho de 2015
Este é o mês do aniversário da minha mãe. Foi comemorado aqui em casa com toda a minha família. O meu avô obedecia a dieta rigorosamente, só saladinha e a carne praticamente sem gordura. Duas semanas depois da consulta, meu avô foi fazer o cateterismo e não deu certo. Quem o acompanhou foi meu tio, sempre de carro, porque meu avô andava bem devagarinho para não fazer muito esforço.
O chefe da cardiologia foi conversar com meu avô e disse que interromperia o cateterismo porque ele estava com três veias entupidas e com a aorta comprometida. Disse também que assim que vagasse um leito ele seria chamado para operar o coração e depois de um tempo teria a liberação para a cirurgia na próstata.
Naquele dia meu coração gelou e eu chorei com muito medo. Escrevi o poema "Pequena morte" e aquilo me acalmou em alguma medida. 
No fim desse mês eu voltei com meu avô ao hospital e acertamos todos os papéis da internação. O médico perguntou ao meu avô se ele tinha dúvidas sobre a cirurgia, seriam três pontes de safena e a restauração da aorta, então meu avô perguntou se abririam o peito dele. Eu me assustei com a pureza do meu avô e o medico brincou com ele dizendo que achava que sim. Aquele médico me passava confiança e eu descansei. O meu avô sempre me dizia "obrigado" por acompanhá-lo às consultas. Os médicos brincavam dizendo "sempre acompanhado da neta, hein, sr. Júlio" e ele respondia "a família é a única riqueza que a gente tem".

Agosto de 2015
Neste mês comemoramos o dia dos pais. Eu passei o sábado inteiro com meu avô porque no domingo visitaríamos meu sogro. Eu dei uma camisa branca para o meu avô, mas não serviu, ele emagreceu, mas o barrigão ainda era o mesmo. Eu não gostava de ficar muito tempo no bar, mas fiquei até fechar. O meu avô era cheio de anedotas, quando ele viu o carro do Cléber disse "com dois litros de água eu deixo esse carro limpo" e rimos.
Mais tarde o Isaac disse no ouvido do meu avô "vô, amanhã é dia dos pais e o senhor tem que ir na igreja", "vô, eu amo o senhor". O meu avô riu e disse que iria sim. O meu avô sempre quis ir à igreja e ia. Mas não sempre. Ele tinha uma consciência inigualável de que não poderia frequentar uma igreja tendo um bar como meio de sustento. Ele não bebia, não fumava. Mas em todas as datas especiais ele ia à igreja. E nesses últimos dias mais ainda. Uma vez foram ao bar, oraram por ele e ele aceitou Jesus. "Não é porque uma pessoa não professa uma fé publicamente que ela não é salva", eu ouvi isso e guardei. Meu avô agia como um verdadeiro cristão.
No dia 11, às 15h00, me ligaram do hospital chamando meu avô para internação, às 19h00. Eu liguei para minha tia e ela foi buscá-lo de carro. Neste dia meu avô encheu a dispensa da minha avó, fez todas as contas do bar, ligou para o seu irmão favorito de Goiás e deixou o dinheiro de pagar tudo que viria, mais o cartão do banco e a senha. [Pouco tempo antes, ele me pediu para levá-lo para visitar seu tio Pedrinho e comprou toda a cozinha que minha avó queria.] Minha tia e minha avó disseram que não precisava de tudo aquilo e ele disse "vocês vão precisar, sim.".
Meu avô foi internado. Eu ligava no celular dele, e nada, ele tinha esquecido no bar. Minha tia foi acompanhante dele. Todo o momento eu falava com ela, não pedi para falar com ele, tinha certeza que o veria no outro dia no horário da visita. Ela nos contou que eles não dormiram. Ele tomou banho gelado porque não sabia como mexer no chuveiro e estava com vergonha dela. Eles passaram a noite toda conversando sobre a família e ele falou como enxergava cada um de nós. Ao lado tinha um paciente bem velhinho que fez a mesma cirurgia que ele faria e sobreviveu.
No dia 12, dia em que eu e meu esposo completávamos seis anos de namoro, às 07h00, começou a cirurgia do meu avô. Por pouco minha mãe não consegue vê-lo, ela chegou às 06h43, meu esposo me deixou com minha avó em casa e levou minha mãe para o hospital. O médico disse para minha tia "se despede dele" e ela disse "pai, daqui a pouco a gente se vê, não precisa ter medo" e minha mãe disse "pai, eu te amo". Meu avô disse que viveu para as mulheres da vida dele, minha avó, minha mãe e minha tia. Meu avô tinha o cabelinho todo branco. A cirurgia duraria em média seis horas e meu avô ficaria dez dias em recuperação no hospital. A cada uma hora um enfermeiro dava notícias e minha tia e minha mãe ligavam. Estava tudo bem.
E fui levar o Isaac na escola e minha avó ficou em casa esperando que alguém fosse buscá-la para visitar meu avô. A cirurgia terminaria às 14h00. O Isaac entra na escola às 13h30. Depois de deixá-lo lá, no caminho, minha mãe me liga e pergunta onde eu estou. Quando respondo ela diz "o vô faleceu", e eu disse "não credito". Fiquei transtornada. Desci do ônibus, eu estava na rua do bar. Uma mulher me ajudou. Eu não acreditava. Eu liguei para o meu esposo. Eu fui para o hospital. Cheguei lá e minha mãe e tia estavam aos prantos. Que dia terrível! Que dor que atravessa a alma!
O Cléber, meu tio Carlos, o Gilson chegaram. Temos companheiros. Somos uma família de mulheres enlutadas. Eles resolveram tudo e nós chorávamos. As pessoas foram chegando ao hospital e minha avó sem saber de nada.
Voltamos para casa e meu tio e eu demos a notícia. 47 anos de casados, minha avô perdeu o amor de sua vida. Perdeu o grande homem que meu avô foi. A vida se foi. Acreditamos que o que vemos é real, mas não aceitamos a realidade. Não aceitamos porque nossa essência é vida. Fomos criados para viver. Mesmo com a esperança do reencontro.
A partir da meia noite do dia 13 velamos o meu avô. O meu avôzinho. O enterramos às 10h00. Aproximadamente umas 300 pessoas presentes, telefonemas infinitos. Um amor que não cabe no peito. Perder alguém que amamos é como perder parte da vida. Eu li o poema "Pequena morte" e ele se foi junto com o caixão. As mulheres dessa família decidem ser fortes pela minha avó. Mas quando menos percebemos estamos chorando. Essa dor não vai passar, talvez se amenize. 
Quanta burocracia para resolver. Ninguém se prepara para a morte, mesmo sabendo que ela é certa. Hoje eu penso que Deus de alguma maneira nos avisa sobre o nosso última dia. Meu avô deixou tudo perfeito. Penso que Ele nos avisa porque o amor é tão grande que Ele nos dá mais uma chance para chegarmos-nos a Ele. Meu avô faleceu e está melhor que nós. Sem dores.
Quando vi a sacola de remédios que meu avó tomava eu pensei nas dores que só ele sabia que sentia. Ainda sim ele lutou para viver. Resistiu a duas paradas cardíacas e na terceira se foi. No nosso pensamento fica um monte de "e se" que não adianta pensar. Nosso pensamento fica no homem maravilhoso que meu avô foi.
Tem gente que tem coragem de se aproveitar da viúva enlutada, absurdo. Meu avô, dias antes de falecer, me pediu para cuidar da minha avó, disse que ficava triste com o modo como eu a tratava. Eu vou cuidar! Agora e adiante estamos todas juntas, cuidando umas das outras e sendo cuidadas.

Setembro de 2015
Hoje é primeiro de setembro, faltam vinte dias para o meu aniversário. E este será o primeiro sem o meu avô. Eu sempre falei para todos os meus amigos a pessoa incrível que o meu avô era. Sempre falei e sempre vou falar, até chegar o dia em que eu não complete mais aniversários.


26 de agosto de 2015

conjugar
os verbos
no pretérito
quando o
assunto é
você
dói demais,
seja perfeito
ou imperfeito.


saudade

eu sinto saudade
saudade da sua teimosia
saudade da sua risada
saudade de acompanhá-lo
(mesmo que seja às consultas médicas)

eu sinto saudade
saudade de tomar café com você
saudade do timbre da sua voz
saudade de ouvir o barulhinho da chave
(que anunciava a sua chegada)

alguns diziam que era desrespeito
eu chamá-lo de você (intimidade)
e se chocavam com a forma com eu pedia a benção
eu sei que vou reencontrá-lo
mas essa saudade não passa.

sozinha

parece que dia 12 foi ontem
mas já faz 15 dias
uma coisa é passar o dia só
mas saber que no fim do dia
aquele alguém chegará
outra coisa é passar o dia só
e saber que seu alguém
não voltará mais.

22 de julho de 2015

telefonema

um fonema é a menor
unidade sonora de uma
língua
ao ouvir seu fonema
mesmo que seja
tele, isto é, distância
eu sinto paz
sua voz não pode ficar
mais longe que isso
"estou bem".


linguagens do amor

o amor precisa ser afetivo
efetivo
ouvi isso ontem
eu o acompanho ao hospital
ligo para encomendar o remédio
mas não digo "eu te amo"
presentes
se é aniversário
compro um presente
mas há um muro invisível
que me impede de abraçar
dizer "feliz aniversário"
mesmo com ótimos professores
meu amor é incompleto
tempo de qualidade
você se lembra?
era adolescência, sua tia disse
"não enfrente o meu pai"
ele te esperava chegar das festas
e então ia dormir
atos de serviço
você lembra?
queria passar no vestibular
ele foi contigo procurar cursinho
pagou metade e todos os dias
pegava ônibus e trem cheios
contigo, acordava às 05h
toque físico
ele pode não ter sorrido nas fotos
era vergonha dos dentes,
mas e aquele abraço
poderia ter durado a eternidade, não?
ele pode ser nervoso,
mas os tapas na sua mão foram
inesquecíveis como correção
isso é bom "quem ama corrige"
palavras de afirmação
você vê como ele fala de você?
cheio de orgulho
para quem chega
por isso eu te digo:
dedicatórias na dissertação
podem não ser suficientes.

você partiu do útero de sua mãe
pequena morte
isso para dizer que
para morrer basta viver

observe. seus cabelos caem
você usa óculos, come pizza,
a memória te trai, ela bate a porta
pequena morte

pequena morte

cada partida é uma pequena morte
viajamos, mas não sabemos se
voltaremos  a ver aquele lugar e tudo bem

cada partida é uma pequena morte
terminamos a graduação, mas
não sabemos se voltaremos a ver os amigos

cada partida é uma pequena morte
doamos aquela roupa velha, mesmo a que gostamos
porque podemos substituir

cada partida é uma pequena morte
ganhamos flores, mas não nos damos conta
de que as pétalas caem e a vida se vai: lixo

cada partida é uma pequena morte
você se casa e aquele seu antigo lar
se foi, apesar de continuar no mesmo lugar

cada partida é uma pequena morte
morte essa que aceitamos por
não saber que se trata de morte

cada partida é uma pequena morte
e apesar das mortes cotidianas, não nos preparamos
quando essa partida envolve amor profundo: luto


20 de julho de 2015

coração

uma avó estava internada em um hospital. a neta, pequenininha, não podia visitá-la. a avó ficou tanto tempo lá que, para a menina, só restavam lembranças. as mais doces lembranças.
um dia a menina foi com a mãe visitar o tio. ao chegar lá, cumprimentou o tio e viu que tinha uma pessoa deitada em baixo do edredom. ao descobrir a menina viu a avó, ainda fraca, mas viva.
a menina chorava intensamente e dizia "eu tô feliz, vó, eu tô feliz!", a avó respondia "eu também, meu amor, eu também.", "eu senti tanta saudade, vó, você conseguiu", "eu sou sua, meu amor, eu sou sua.", "eu não tô acreditando, eu tô tão feliz, era tanta saudade, vó", "eu consegui, meu amor, eu consegui, eu sou sua, eu consegui por você", ambas permaneceram chorando e se abraçando por minutos que se eternizaram.
eu sou uma neta, não tão pequena assim, que tem um avô internado em um hospital. e desejo que esses minutos de reencontro sejam eternos para mim. hoje eu li sobre luto e melancolia, em alguma medida sempre me senti melancólica, em contrapartida nunca estive preparada para o luto. fronteiras sentimentais que ainda não posso romper, não mereço romper e não quero romper. quero chorar de alegria. "vô, o meu coração é seu."


https://www.youtube.com/watch?v=nmv1QYLcgNY

13 de julho de 2015

conversa

a JoutJout

eu sei que você a viu.
ah, eu seu que você a viu e ouviu. foi bom. você refletiu.
sim, quando você tinha sete anos, tinha dentes tortos, usava óculos e chiquinhas.
mal sabia que, apesar desse ser pavoroso, eram seus melhores momentos.
tem recordações de um menino chamado w. que era belo e hoje é um terror.
aí teve festa junina, você foi de calça jeans e uma camisa de bolinhas.
e ainda queria que o g. te olhasse... você mudava de uma série para outra
lembra da professora e.?
você descobriu que mesmo na faculdade existem professoras assim
talvez mude a letra de e. para p., mas elas existem, mesmo sendo raras
e você o que vai ser? médica. paquita da xuxa (hoje funkeira). musicista. professora.
você tinha tanto piolho. veja a vantagem de crescer
quando era criança vivia rodeada de gente, só porque era inteligente
e agora vive sozinha pelo mesmo motivo.
 pensava em casar, ter filhos... e que maravilha: você casou, todos têm esperança
sua primeira leitura de verdade foi "o primeiro amor de laurinha",
mas não acredita que isso possa ser real, né?
foi sua iniciação, por isso gosta tanto de ler.
eu não queria ser você.
esses cabelos lisos e esses óculos que não te deixam.
pelo menos arrumou os dentes e não usa mais aquele vestido amarelo horrível
como será que você vai estar quando nos vermos novamente? velha com certeza.
você lembra da peça que escreveu na oitava série?
"a roupa nova do pastor", causou uma loucura no colégio.
isso porque tinha um gay, imagina se essa peça fosse apresentada hoje...
e as saias jeans que você usava para ir à igreja? menina, não precisava ser tão feia
a vantagem do tempo é que as espinhas foram com ele.
e um benefício genético: você nunca foi gorda.
eu não esqueci o bem do tempo na sua relação com seus pais
eu sou justa com o tempo, talvez não seja com você.
você precisa mudar, cadê aquela vivacidade de criança?
agora pensa demais, e está estática
aprenda a ver o hoje sob outra ótica
e daqui alguns anos conversamos novamente,
já que a juventude não é eterna.

1 de junho de 2015

aprendizagem

há dias meu velhinho pediu que o levasse para ver o tio. pela primeira vez eu fui sem reclamar de nada, e não me orgulho disso. eu tenho prazer em agradar meu velhinho, mas encontros de família desconhecida... fomos. ao chegarmos, vi que o tio dele estava vendendo saúde e não soube qual impacto isso traria, afinal meu velhinho está muito doente. não suporto vê-lo assim, eu não quero atender seus pedidos porque ele pensa que são os últimos, quero apenas vê-lo bem. seu tio nos recebeu com tanto anelo que em nenhum momento pensei "que saco, estou aqui", na verdade gostei muito de conhecer parte da família desconhecida e percebi que perdemos muito ao evitar certas experiências. há muito tempo não vivia uma tarde preciosa como aquela. o tempo ensina muito. quando todos estavam reunidos, compartilhavam suas histórias, ensinamentos e quanta aprendizagem! o tio do meu velhinho, mais velhinho que ele, foi quem o recebeu em sp quando veio do interior de pernambuco. ele nos contou as humilhações que sofrera por pedir emprego em tantas portas e as constantes negações, até que se ajoelhou, pediu a Deus que lhe desse uma oportunidade e finalmente conseguiu. com orgulho, disse que o pai o ensinou nunca roubar, passar fome, mas nunca fazer algo que possa ferir o outro. meu velhinho, para o tio, só pode ser um homem grato. sua família, que em alguma medida é a minha também, foi tão atenciosa, preparou um almoço que por mais simples que fosse foi delicioso porque sentíamos o sabor da alegria em receber aquela visita inesperada. onde come um, comem dois, três, quatro, quantos tiverem. naquele dia o tempo passou e eu nem vi. na verdade os últimos dias tem sido assim, tenho tido experiências tão pequenas que causam transformações tão intensas que me desconstroem e eu nem percebo o tempo passar. eu envelheço também e vejo que sei tão pouco... quando saímos de lá só haviam sorrisos de ambos os lados, meu coração fervia e o meu cérebro não parava de pensar, permaneci calada. houve um tempo em que falava demais, hoje prefiro ouvir e sou uma pessoa melhor. eu não sei quanto tempo de vida ainda resta para todos os personagens dessa história, mas sei que todos viveram honestamente, com amor, fé, trabalho, e orgulham-se de contar suas histórias que perpetuarão de geração à geração, numa mesa que te espera para ensinar mais sobre a vida.

memória fraterna



eu e ele somos irmãos
irmãos que o destino escolheu
dezoito anos nos separam
dizem que virei gente
quando ele nasceu

[tudo porque por ele faço tudo,
e ninguém precisa pedir]

antes eu não sabia dizer
"eu te amo"
agora eu distribuo, e de verdade.
ele é tão puro!

há sete anos eu o via todo dia
e que alegria!
com ele aprender a viver é certo.
eu lia livros, contava histórias
e ele disse à professora
que aprendeu poesia com a irmã.

há dois meses eu me casei
e ele correu para levar as alianças
disse que correu porque eu estava
com pressa
a verdade é que o tempo passou
e eu nem vi, mas vivi.

ontem ele dormiu aqui em casa
e eu senti saudade,
mesmo levando ele toda sexta
ao taekwondo.
eu não quero que ele cresça
e me esqueça.

sou a medrosa dos sentimentos
refém do tempo.

11 de março de 2015

família



durante muito tempo eu quis um lugar
para chamar de meu
hoje eu sei que sempre tive esse lugar
eu olho as paredes do meu quarto
e os objetos que têm nele,
lembro que odiava saber que alguém entrou e mexeu
há um tempo na vida no qual o desejo é estar só
longe da família
depois vem outro no qual só se quer estar perto
ninguém morreu
mas eu queria ter estado mais com minha mãe
dito a minha avó que a amava
e demonstrado ao meu avô
a admiração que tenho por ele
aos meus tios eu queria dizer que são meus
exemplos e ser um pouco mais doce
eu só soube ser eu mesma com meu irmãozinho
todos me amam muito e de graça
a minha irmã sempre foi linda, independente
e eu tenho muito orgulho de quem ela é
nesses últimos tempos estamos tão juntas
fico feliz que ela participa de tudo e porque quer
faltam poucos dias para a minha vida mudar drasticamente
e meu primo que peguei no colo será meu padrinho
eu sinto como se fosse a ambiguidade
estou feliz - apesar de insegura
e ao mesmo tempo triste porque cada momento
se aproxima do último
logo será o último café, a última novela
hoje eu não sinto vontade de responder ninguém
só olhar
olhar o que representam as rugas e os cabelos brancos dos meus avós
a disposição e a força da minha mãe e da minha tia
observar e agradecer
a sorte de ter a família que tenho
uma família que foi continuamente feliz
com muito ou pouco
que cuida um do outro, repreendendo sem falar mal
quem eu sou - mesmo que não saiba tudo
é formado por características de cada um
honestidade, solidariedade, carinho e fé
são traços nossos
lá no fundo eu tô com um medinho
mas ouvir vocês e tê-los ao meu lado
- mesmo que não seja mais diariamente
me dá a certeza de que o futuro promete: felicidade

17 de fevereiro de 2015


durante muito tempo ela teve listinha de projetos
dois deles nunca foram realizados
e no centro de convivência
ela não aguenta ouvir gente falando
da Europa, do Canadá
da experiência de dirigir e afins
este ano alguns planos:
viagem internacional
(ainda que a América Latina seja logo ali)
ah, habilitação e visual
talvez assim ela se sinta menos inferior

enquanto a gente tem ela ali
está tudo certo
ela não vai partir
ela faz tudo por mim
ela é bonita
mas tem mais bonitas do que ela
aí é inevitável: eu dou um like
ela não tem tempo para pensar em outro
ela estuda muito
ela está vidrada no casamento
ela nem reclama se não dou presentes...
ela sabe cozinhar
dizem até que ela fez curso de meiguice
e ao mesmo tempo ela é forte
ela me ama muito
nunca vai terminar comigo
se a gente briga
é só eu pedir desculpas
dizer que amo e está tudo resolvido
com ela minha vida será muito boa

me perguntaram: mas e se...
ela terminar comigo?
impossível, mas ainda sim
tudo bem.
eu sou muito bom também



Você prometeu que não ia mentir. disse que queria que eu fizesse parte das páginas do seu livro. construindo a mesma história. a gente planejou viver mil histórias, tomar café no Versalles, um sítio, um violão, essas seriam as realizações do mais incrível sonho de toda minha vida.
Eu não tinha notado. mas é aí que fica o vazio. o sonho é meu, não nosso. mas me pergunto: eu não o compartilhei ou você nunca quis que ele fosse compartilhado? Diz que sim, mas não vejo. então percebo que a promessa foi quebrada.

família


essas fotos escondem uma identidade
a famosa frase é
"família não se escolhe, se tem"
infinitas vezes eu ouvi
"não existe ex pai, ex mãe..., menina!"
a minha mãe é bela e amorosa
tenho a sensação de que ela é Afrodite
a minha irmã é independente e forte
de relance vejo nela Atena
o meu avô é o líder
guerreiro, seu nome é Zeus
a minha tia cultiva, cuida
dá vida e tenho Ártemis ao meu lado
a minha avó ama a todos nós
ciumenta, cuida da família é Hera
o meu tio é sonhador e nos dá esperança
costumam chamá-lo de Morfeu
eu tenho dois primos um é Orpheu
o outro Poseidon, seus nomes os descrevem
eu tenho uma família de deuses
que caminham pelo mundo
disfarçados para conviver com os humanos
e me dão o privilégio de caminhar
com eles, mesmo sendo uma semi-deusa

Ele é alto. Magro. E não era dentre os rapazes o que mais chamava atenção, mas sem dúvida era o mais educado. Suas roupas eram sempre as mesmas. Um estilo meio nerd, mas cheio de humor. Ele a conheceu e se interessou pela inteligência e por algo que talvez nem ele mesmo saiba explicar, mas acho que não foi pela beleza, ela é excêntrica.
Construíram uma história linda, cheia de amor e mais um pouco. Amigos em toda a parte, risos, lanches, descobertas espirituais e caminharam durante muitos anos. E durante esses anos algo foi se perdendo, se perdendo até que a plantinha morreu... entre sins e nãos ditos nas horas erradas, como toda bela história, passou pelo final feliz, ali bem pertinho, mas desviou-se, e caiu no desgaste.
Separaram-se.
Foi um percurso com muitos acertos e muitos erros. E esses erros procuraram ser consertados. Voltaram. E as portas do casamento ele pensa estar sobre o controle de tudo, sente que ela jamais terminará com ele e acha que pode fazer o que quer como curtir todas as fotos da mesma menina. Isso a faz sentir desvalorizada, desrespeitada e terá consequências...


16 de fevereiro de 2015


nessa poética o eu lírico é sempre eu
mesmo que eu fale de outros
numa reunião pediram-me
"defina sua vida em uma palavra"
e eu disse: rejeição
o outro disse sobre mim
acolhimento
mas não queria pena
eu queria conquistar porque merecia
eu tenho amiga que já apanhou do namorado
amiga que já foi do amor livre
amiga que namora o mesmo rapaz
desde os treze anos (hoje temos 23)
amiga que quer porque quer um namorado
e eu cansei de mendigar amor
os outros não cansam de dizer que estou magra
hoje vi uma imagem minha e me horrorizei
sinto-me cansada todos os dias
e fraca
com dor na cabeça e nas costas
talvez esteja morrendo
e essa poética já não será sobre mim

15 de fevereiro de 2015

há cerca de um ano um colega de igreja
disse ser gay
todos desconfiavam
mas ninguém dizia nada
há suspeita de que há vários gays na igreja
por que estão lá?
esse colega disse que negou ser gay a vida toda
ouço murmurinhos de gente dizendo
que se nasce gay e que se torna gay
uns culpam a biologia, outros a psicologia
mas a maioria culpa deus ou o diabo
soube há poucos dias que esse colega gay
foi abusado sexualmente na infância
tenho um outro colega que quase foi abusado
mas reagiu e hoje não é gay
isso tem alguma relação?
eu estava revisando um livro logo cedo
sobre um poeta marginal que é gay
é normal entre os queers, beats, malditos
no livro ele dizia que também foi abusado
isso tem alguma relação?
eu assistia a tv aberta e só passava comerciais femininos
divulgaram que morreu a susana de moraes
filha de vinicius de moraes
namorada da adriana calcanhoto
personalidades. eu gosto dos três
mas não sabia que as duas eram amantes
não sei nada sobre o sentimento gay,
mas imagino que seja semelhante ao hetero
depois de revisar o livro pensei no trauma
freud sabe explicar o que é o trauma, a libido, o recalque
o complexo de édipo e todo esse lance de sexualidade
isso tem alguma relação?
na faculdade de letras todos esperavam
a chegada de um professor gay
não vejo sentido
há lugares, cursos ou roupas apropriados ou não para gays?
não vejo nenhuma relação


minha escrita tem uma profunda
relação com a tristeza
eu mergulho no mar da melancolia
sem acreditar que existe
um oceano de felicidade
eu desejo ir para bem longe
acho que como as noivas
eu não sei dizer 'não'
sofro calada e se falo
sou condenada por um erro
que não cometi,
para outro estou sempre errada
e eu estou cansada de pedi perdão
não paro de escrever
meus textos ao mesmo tempo
em que me fragilizam
são meu escudo
eu penso e repenso e argumento
e parto para um lugar onde esteja só
lá, ninguém vai me magoar
desconhecidos não nos magoam
só os bem conhecidos
então eu paro de escrever
mas os textos antigos
são publicados
e a dor que ficou para trás os lê
desejando ter sido amor
finalmente eu molhei os pés
no oceano da felicidade


na casinha já houve amor,
confiança
paciência
as flores exalavam
bondade
carinho
mas veio uma chuva forte
e rachou uma parede da casinha
nessa rachadura
teve infiltração
e tudo ficou num mofo só
o cheiro era de tristeza
mentira
dor
e a moça ficou só
quando a casinha desabou

14 de fevereiro de 2015

confiança



sobre a mesa há um vaso
quem o colocou ali foi você
juntos, com a mão no barro
o construímos
cheio de capricho, amor
mas você deixou que outras
de
rru
ba
ssem
e por mais que tentássemos
reunir os pedaços
nosso vaso nunca mais foi o mesmo

28 de janeiro de 2015


eu nunca escrevi sobre você
apesar da sua presença nas minhas mais belas memórias
me admira sua delicadeza
me incomoda sua obediência
me irrita sua fraqueza e complacência
mas me agrado da sua companhia
apesar de desejar que vá para bem longe
para um lugar onde não haja loucos
onde possa estar liberta de quem te oprime
de quem pensa ter razão e está cheia de demônios
sinta o amor de quem os impede de chegar até você
e viva, viva, em paz, até a eternidade: nos vemos lá!