3 de julho de 2019

uma genuína tristeza em viver (ou sobre a responsabilidade que temos com a vida do outro)

Em 31 de maio de 2019, sob direção de Ava DuVernay - premiada diretora afro-americana com filmes como "Selma" e "Middle of Nowhere" - estreou na plataforma streaming Netflix "When they see us" ou "Olhos que condenam", de acordo com a tradução brasileira. A série, com quatro episódios de aproximadamente 1h30min, conta-nos a história dos Cinco do Central Park: Korey Wise, Antron McCray, Yusef Salaam, Raymond Santana e Kevin Richardson. Em 19 de abril de 1989, Trisha Meili foi brutalmente estuprada enquanto corria no parque. Cinco adolescentes, quatro negros e um latino, que viviam no Harlem, em Nova York, foram acusados de cometer o crime, no entanto a polícia usa de meios ilegais para obter suas confissões - por exemplo, coagi-los a depor durante 42h sem a presença de um responsável maior de idade ou advogado, sem alimentá-los e agindo com violência.
A promotora do caso, Linda Fairstein, mulher branca, hoje com 72 anos e premiadíssima com seus romances policiais, pós a condenação dos garotos, - para fazer carreira - precisava resolver o caso com agilidade, pois a mídia não parava de veicular notícias a respeito. O sangue e o sêmen encontrados nas roupas de Trisha Meili não correspondia a nenhum dos acusados, e, ainda assim, todos foram condenados devido aos depoimentos onde foram induzidos a confessar o crime. Entretanto, as cinco histórias não coincidiam e não havia testemunhas. Um deles, com 16 anos, foi preso em uma penitenciária de adultos e cotidianamente apanhava dos demais presidiários, os outros ficaram em reformatórios. Durante os 12 anos em que ficaram em privação de liberdade, a promotoria propôs redução de pena para que eles confessassem, mas nenhum o fez. Finalmente, após cumprirem a pena, o verdadeiro estuprador, um homem branco, confessou o crime em detalhes, as provas forenses foram verificadas e confirmadas.
Quando se é inocente "toda culpa é energia estagnada, não muda o passado e não molda o futuro", disse uma das mães ao filho. O que fazer quando se sofre uma injustiça simplesmente por ser quem se é, negro? (Lembro de Rafael Braga e tantos outros). Depois de solucionado o crime, o Estado inocentou os rapazes, mas o prefeito Michael Bloomberg se recusou a pagar indenização. Dentre todas as figuras possíveis que critica os meninos, destaca-se a figura de Donald Trump à época apenas um magnata e hoje o homem mais poderoso do mundo (sintomático, não?). Foi em 2014, com o governo de Barack Obama, que cada um dos meninos, agora homens, recebeu cerca de 41 milhões de dólares para refazer suas vidas. Mas, afinal, não há dinheiro que possa restituir o que eles não viveram. Nos últimos dias, com a repercussão da série, Linda Fairstein e os demais policias envolvidos no caso dizem estar sofrendo com o julgamento do público. Em alguma medida eles estão sendo tratados com a mesma crueldade midiática que trataram os meninos, com a diferença de que são adultos e têm mecanismos para lidar com toda a violência que recebem.
Coincidentemente ou não, em vias de assistir tudo ao mesmo tempo, o documentário "Sem pena" (disponível: https://www.youtube.com/watch?v=NcuCPkp8SHY) não trata especificamente de crimes de cunho racial, mas de pessoas que também são presas injustamente. O Brasil é o 3º país com maior população carcerária do mundo e muitas vezes, para cumprir estatísticas, o judiciário, desobedece os devidos procedimentos, sai a condenar voluntariamente pessoas inocentes. Segundo Ferrajoli (2006), o processo penal não se trata de um instrumento da comunidade política para auxiliá-la na perseguição de “criminosos”, mas um trunfo que pessoas acusadas de praticar determinadas condutas criminalizadas possuem para que sejam submetidas, enquanto indivíduos, a um procedimento racional, previsível e protetor de seus direitos enquanto pessoa humana. Esta verdadeira estruturação de princípios indispensáveis começa com o princípio do estado de inocência, que afasta o ranço social estigmatizante que eleva à condição de um condenado em sentença transitada, em julgado um sujeito que está apenas sendo acusado. Nesse sentido, são inúmeros os casos nos quais pessoas que supostamente cometeram o mesmo crime, cumprirem penas diferentes ou conviverem com outras que cometeram crimes muito mais prejudiciais à sociedade em juízo de valor; isso, ao invés de solucionar, reproduz a máquina de delitos.
No documentário, chama atenção também, o fato das melhores universidades do país no que tange ao Direito, ofertar mais disciplinas voltadas ao direito do consumidor do que ao direito humano, pois isso sinaliza a ideologia por trás do sistema: o apagamento de minorias e da dignidade da vida. E pior: com o discurso de que a promove. Todo este cenário que é cinematográfico, mas dialoga e muito com a realidade gerou em mim uma genuína tristeza em viver. Como se no fim nada valesse a pena. Por outro lado, como nos falta o senso de responsabilidade diante do outro. Que comecem os meus clichês, talvez eu esteja hiperdimensionando tudo porque eu sinto demais, e eu preciso compartimentar as crises para não enlouquecer.
Nos anos de 2012, 2013, 2014 eu fui voluntária no Instituto Papel de Menino e todo primeiro domingo do mês eu passava a tarde com os meninos da Fundação Casa de Franco da Rocha. Conheci essa ONG através da Silvana, uma das mulheres mais admiráveis que tenho a honra de conviver. Todo aquele cenário de apagamento de identidade, até eu conhecer cada um, ver casos de reincidência e ter vínculo com alguns poucos, mudou profundamente o meu olhar. Em "Olhos que condenam" um agente da polícia ajuda um dos garotos enquanto ele estava preso e sempre o chama de "garoto" no que este responde "eu gosto quando você me chama assim". Na Fundação todo visitante é senhor(a), dentre eles: mães e voluntários, quase não há pais. É quase inimaginável pensar que de repente seu filho pode parar lá sem ter feito nada de errado, mas pode. Leva tempo até que eles confiem na gente para contar o que de fato fizeram. Tem gente que se torna mau porque o mundo é mau, tem gente que o sistema força a sofrer todos os infortúnios. Toda gente é recuperável. Quando um menino sai de lá, muito provavelmente ele vai voltar, não porque ele queira, mas porque não tem nenhuma oportunidade fora (e isso não é discurso de quem romantiza a vida ou "apoia" bandido, se a visão é o sentido mais real, eu vi muitos meninos tentando e voltando). No ano passado eu tive um aluno "x" no curso de Eletrônica e ele não prestava atenção em nada, um dia, enquanto eu dava aula de 'Elementos da Comunicação' ele me tirou do sério e eu pedi que ele cantasse a música que estava ouvindo para eu ver se compartilhávamos os mesmos códigos linguísticos. Ele cantou uma composição dele e a aula foi incrível, eu nunca me esqueci dele. Naquele dia pegamos o mesmo ônibus e ele me contou sua história, disse que estudava eletrônica porque era muito bom em "pegar carro, sabe como é", eu tentei disfarçar meu choque, mas fiquei feliz que ele sabia que era bom e estava estudando para mudar. Duas semanas depois ele saiu da escola e acabou voltando para Fundação. Entendi que o meu trabalho era a base, eu não quero que nenhum aluno meu vá parar lá. E isso é, sim, minha responsabilidade também.


Mesmo quando chega o fim do ano e eu corrijo redação do ENEM, algo tão simples, eu penso que não posso corrigir de qualquer jeito, tenho que reler quantas vezes for necessário, não pode ser automático porque eu estou lidando com o futuro de outra pessoa e isso é muito importante. Então, eu não consigo entender o que policiais, promotores, juízes, advogados e toda essa galera do Direito, mas não só, pensa quando lida com a vida do outro. O pastor quando explora até o limite a pobreza de uma pessoa em nome de um deus, um professor que desiste do aluno, um médico que se nega a salvar uma vida porque falta dinheiro, gente que só vê número e não vê o humano. Sei que não trouxe argumentos para convencer de que precisamos nos importar e cuidar uns dos outros, mas nem sei se se trata de argumentos. Só sei que se algo vale na vida são os relacionamentos e que toda oportunidade de fazer o bem, praticar o amor e a justiça deve ser aproveitada. Como tenho dito insistentemente, chegamos em um ponto que não basta não ser racista, machista, homofóbico, etc. todo marcador de diferença deve ser denunciado e combatido para que a vida faça algum sentido.

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