24 de dezembro de 2023

sobre fé e natal

Antes de escolhermos certas coisas na vida, algumas escolhas são feitas por nós, antes mesmo de nascermos. Alguns acreditam que isso ocorre graças ao divino, outros acreditam que é devido ao acaso, seja como for, ao nascer os meus pais eram Elaine e Antônio, a língua com a qual as pessoas falavam comigo desde o ventre era a portuguesa e o meu país era o Brasil. Ser brasileira diz muito sobre mim, a ponto de no exterior os estrangeiros me reconhecerem como brasileira, sem palavra alguma, só pelo meu andar, talvez pelo meu vestir, pelo meu tom de pele, etc. 

Conforme vamos crescendo, é evidente que fazemos escolhas desde a infância, mas parece que na adolescência algumas escolhas são decisivas e praticamente ditam quem nos tornamos naquele processo de formar nossa identidade para além de nossos genitores. Escolhemos qual carreira seguir, qual visão política teremos, se proferiremos uma fé, se vamos ou não casar e ter filhos, entre tantas outras escolhas. É claro que tudo pode mudar, a maioria das escolhas não são irreversíveis, mas todas elas deixam rastros.

Digo isso porque sou brasileira, à esquerda e cristã, mas desde 2018 raras vezes me apresento falando "sou cristã", prefiro que as pessoas me conheçam e então descubram. E quando acontece elas se surpreendem, e eu nunca sei o que dizer. No Brasil, é difícil para quem não é cristão, acreditar que um cristão não é misógino, homofóbico, racista, entre outras características que o bolsonarismo, mas não só, despertaram no imaginário social. Ainda pesa sobre mim como esse contexto me desviou de tanta gente querida, quase como se o cenário propício pudesse revelar o pior que cada ser humano tem em si. 

Desde muito nova fez sentido para mim, a ideia de um deus que, ao invés de exigir sacrifício, se sacrifica. Por amor, escolhe encarnar no humano e abrir mão de sua glória para viver como um mortal. Um deus que, como disse Dom Helder Câmara, nasce pobre, de mãe solteira, com pai adotivo e é recebido no mundo por magos e pastores. Sua pequena família o leva para outro país e juntos eles se tornam refugiados políticos, vivendo na periferia da cidade. Ao crescer, sua profissão é desprestigiada, um simples carpinteiro que, ao iniciar seu ministério, chama para caminhar consigo os marginais, fazendo milagres entre os mais necessitados, sem pedir nada em troca. Manuel António Pina, um poeta de que gosto muito, disse que a Bíblia contém histórias tão lindas que, independente de serem verdadeiras ou não, mesmo que não o fizessem crer, o tornava um ser humano melhor. Quem sabe ler e interpretar não pode deixar de ser afetado pela Palavra. 

Pensar nessa história que tomo como verdade para vida, é o motivo que me entristece ao ver como muitos cristãos se portam. Ao mesmo tempo é o que me dá esperança porque Jesus é um deus que permite que os humanos sejam livres, para crer ou não, para agir em nome Dele de maneira perversa. Cada um sabe de si. Sendo assim, quando me relaciono com as pessoas estabelecendo uma relação de confiança, sinto liberdade para dizer "sou cristã". Em dias como o de hoje, sinto orgulho imenso em falar isso. Há anos faço parte de uma comunidade que celebra o Natal arrecadando fundos para contribuir mensalmente com 50 ONGs. Todo ano, quando chega essa época, todos se engajam em um movimento de amor que coloca tempo, energia e recurso à disposição do próximo. É como se todo o discurso ouvido dominicalmente se materializasse, pois servir pessoas, doar, ajudar quem precisa é uma forma de vida, desse modo devolvemos a Deus (que habita o ser humano) tudo aquilo que Ele tem dado. Esse jeito de ser não se limita às datas festivas, é cotidiano.

Neste ano, meu retorno à Etec de Artes para ver os trabalhos de conclusão de curso dos meus alunos me revelou algo muito poderoso. Enquanto eu ensino, eu escuto, eu cuido, eu sou inteira e tanto mais, que inconscientemente, eu trato cada aluno como um pequeno Cristo. É impossível que eles não sejam atravessados e eu também. Isso não significa que eu os evangelize, pelo contrário. A escola deve ser plural, democrática, laica e tudo mais que uma igreja não é. Significa que o que nos move é real, ainda que invisível, e não tem como passar despercebido. Ser recebida pelos meus alunos com tanto afeto e ver a qualidade de seus trabalhos, reafirma dentro de mim que está tudo conectado, e que olhar o ser humano com dignidade, reverência dando-lhe as ferramentas e o suporte necessário é potencializá-lo ao máximo. Essa forma de ser não é só na profissão, é com amigos, familiares, com qualquer um.

Em 2023 eu estive pouco presente na comunidade de fé da qual faço faço, mas ela está comigo aonde eu vou. E veja, refiro-me à comunidade, não à instituição, ao movimento etc. A instituição fere com seus dogmas, o movimento não exige compromisso. A comunidade acolhe, não culpa, não discrimina, não manipula, a comunidade se esforça para agir com paz, justiça e alegria, está sempre a favor da vítima e abraça a diferença porque isso é se parecer com o menino que nasceu em Nazaré, numa manjedoura e foi revolucionário, subvertendo a lógica do Império Romano.

Hoje, pensando, que assim como os meus gastos aumentaram, os gastos das ONGs também, por isso a meta da campanha de natal aumentou e foi alcançada, eu fiquei feliz e me senti profundamente grata. Há igrejas que se aproveitam da fé das pessoas e não têm transparência na forma como administram sua arrecadação, mas há igrejas que além de esclarecer suas finanças, têm como missão compartilhá-la com os pobres. Ao dizer isso, eu não quero converter ninguém, até porque eu constantemente questiono minha fé para fortalecê-la, digo isso para não me envergonhar do evangelho, para estabelecer diálogos produtivos e civilizados, para respeitar as diferenças e apreciá-las, para conseguir conviver em amor.

E sempre, sempre denunciar o mal até que ele finde.

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