31 de dezembro de 2023

crônicas de igreja

 (ou fazendo as pazes)


1.

houve um tempo em que, enquanto estava na igreja, alguns louvores me tocavam profundamente e o meu corpo todo estremecia, erguia as mãos ao alto em rendição ao acontecimento de sentir a presença do divino e chorava (na maioria das vezes de alegria e gratidão, algumas outras de tristeza, mas o acolhimento era sincero). a atmosfera da celebração dominical me tomava por inteira. com o passar do tempo algo mudou, talvez o conceito paulino de culto racional tenha predominado e meu olhar tornou-se mais crítico, analítico, buscava coerência. não deixei de chorar, mas quando, raramente, isso ocorre, minha interioridade é mais profunda. não acredito que o divino possa ser controlado, não é disso que se trata, são apenas formas diferentes de se relacionar com ele. para uns a primeira forma pode ser mais intensa, para outros mais rasa. sei que observo. atualmente, quando estou em uma celebração, vejo que para ofertar as pessoas pegam o celular para fazer um pix, e durante a entoação dos louvores, elas gravam vídeos para postar nas redes sociais. enquanto o pregador compartilha a palavra, uma pessoa ou outra pega o celular para ver as horas, e de repente responde uma mensagem, sai para ir ao banheiro, volta, confere quantas curtidas recebeu o vídeo postado. estar na igreja pode ser o hype. se as luzes, a decoração, a qualidade do trabalho musical for bom e o pastor não for preconceituoso, dá até pra convidar os amigos. e se o pastor tiver um bom capital cultural, é capaz que os amigos se autoconvidem. no meio disso tudo pergunto ao estranho ao meu lado quais louvores foram cantados e o que o pastor pregou, constrangido ele diz que não sabe. atrás de mim ouço duas mulheres comentando ela não se envolve, não participa. e eu me pergunto o que estamos fazendo aqui, eu reparando no poder dos celulares, os outros reparando em mim enquanto eu reparo. 


2.

no hebraico não existe superlativo, é por isso que em muitas traduções de textos bíblicos duas vezes aparece a mesma expressão como em verdade, em verdade vos digo para dar ênfase, como quem diz isso é verdade mesmo. uma vez, quando decidi participar de um curso de homilética, o pregador disse que eu era uma grande mestra e não uma pastora, pois eu falo sobre não falo com. posso explicar algo muito bem e o outro vai entender, mas não vai conseguir aplicar na sua vida diária. depois disso, observei que sempre que eu digo aprendi isso com o mestre dos mestres todos olham para mim deslumbrados, ainda que, na verdade, eu tenha aprendido sozinha. é interessante porque a ilusão de que estou próxima a Ele é um recurso legitimador, mesmo que o mestre dos mestres, neste caso, não seja jesus.


3.

quando estou em comunidade sinto algo diferente. é bom. no entanto, minha comunidade não está dentro da comunidade, isso me faz sentir desintegrada. há coisas que aprecio em absoluto e outras que rejeito da mesma maneira. não sei do que faço parte. estou em trânsito, presa a uma comunidade que existe só no meu passado e me dirigindo à outra que desconheço, no mesmo lugar.


4.

fui cumprimentar o pastor para lhe desejar feliz ano novo, quando me viu ele disse só nesta época, né ao que eu respondi que horror! e o abracei. houve um ruído na nossa comunicação. talvez ela tenha querido dizer que eu só o cumprimento nos dias 31 de dezembro de todos os anos, mas eu entendi que ele disse que eu só apareço na igreja nestes dias. seja como for que horror! e feliz ano novo!

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